Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Subversão do sujeito… uma versão da pulsão
Rosângela Turim (Associada à CLIPP)
Lacan se serve da descoberta freudiana para construir um conceito de pulsão articulado à linguagem e apresenta tal versão no artigo de 1960 “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”:
“Mas se nosso grafo completo nos permite situar a pulsão como tesouro dos significantes, sua notação como ($<>D) mantém sua estrutura, ligando-a à diacronia. Ela é o que advém da demanda quando o sujeito aí desvanece.” [1]
Esta é uma pontuação do texto de 1960, uma versão da pulsão naquele momento do ensino de Lacan, um recorte dentre tantas outras versões desenvolvidas ao longo da psicanálise de orientação Lacaniana, especialmente nos seminários 11 e 23 e, no seminário de Miller, Silet- Os paradoxos da pulsão. O trajeto aqui cronológico e teórico avança na direção de uma tentativa de dar conta, do ponto de vista conceitual, daquilo que, ainda hoje, insiste em escapar de qualquer significação.
Em Freud, a pulsão é inerente ao aparelho psíquico e definida como força constante, entre o somático e o psíquico.[2] Ele configura um aparelho psíquico a partir do jogo de forças das pulsões, o dualismo entre pulsões de autoconservação do eu e sexuais, na primeira tópica, e o dualismo pulsão de vida e pulsão de morte, na segunda. Descreve seus destinos e o fator quantitativo ou econômico da pulsão.
Em “Análise Terminável e Interminável” (1937), Freud já atribuía ao fator quantitativo da pulsão “um obstáculo no caminho da cura analítica”. Ao constatar que o amansamento ou “domesticação da pulsão pelo Eu é sempre parcial”[3], apontava para a dificuldade, na análise, de o sujeito dar conta deste tipo de satisfação que escapava à decifração.
Lacan traduz a pulsão freudiana em termos de demanda, na qual esta retoma o que é possível ser transposto do pulsional à fala. O algoritmo da pulsão ($<>D) demonstra que a exigência da satisfação pulsional do sujeito tem que passar necessariamente pelos significantes da demanda do Outro.
Uma questão aqui se coloca: se o grande Outro (A) é referido por Lacan no grafo do desejo como tesouro dos significantes, o que ele quer dizer com a pulsão como tesouro dos significantes, no plural, ao mesmo tempo em que afirma que a pulsão é o que sobrevém quando o sujeito desvanece frente à demanda do Outro?
No artigo intitulado “Subversão do sujeito… , publicado na Opção Lacaniana, 74, a pulsão, como se encontra na citação de Lacan, “não implicaria propriamente uma regularidade capaz de garantir uma ordem como aquela que viria do Outro, mas está apresentada como tesouro dos significantes no plural devido à pluralidade e à plasticidade concernentes à sua montagem.”[4]
Na sincronia, o posicionamento de um significante em relação ao outro evoca o princípio da regularidade; dessa forma, o Outro como “lugar do tesouro do significante” articula-se à reunião sincrônica do significante, na qual cada significante se sustenta em oposição aos outros.
Ao se referir à pulsão, Lacan faz referência à diacronia e não à sincronia (relacionada ao lugar do Outro). A diacronia está no “eixo das sucessões”, com transformações. No grafo, temos uma passagem do eixo sincrônico ao diacrônico (no eixo das sucessões) onde os elementos do primeiro aparecem, não sem modificações, no segundo.
No trajeto do grafo há uma transposição do primeiro para o segundo patamar, onde algo se mantém, mas em outros termos. O Outro, será requisitado (che vuoi) a responder pelo valor do tesouro do significante do qual ele é o lugar (no primeiro), mas agora em termos de pulsão. Passa-se assim da sincronia significante própria ao lugar do Outro à diacronia dos significantes na montagem da pulsão.
O lugar da pulsão no grafo do desejo introduz a dimensão pulsional no campo da linguagem.
Nas palavras de Lacan:
“(…) na medida em que o Outro é solicitado (che vuoi) a responder pelo valor desse tesouro, isto é, a responder, certamente, de seu lugar na cadeia inferior, mas nos significantes constituintes da cadeia superior, ou seja, em termos de pulsão”.[5]
Sérgio Laia conclui que “a pulsão é situada por Lacan como tesouro dos significantes porque a simultaneidade, a sincronia do funcionamento do significante não dá conta das sucessões que tomam diacronicamente os corpos vivos em seus investimentos pulsionais. O modo como o que é vivo ganha corpo nos investimentos pulsionais faz Lacan afirmar que o Outro – lugar no primeiro patamar associado a uma ordem e não propriamente a um corpo é requisitado a responder, ‘em termos de pulsão’ o que antes se encontrava como ‘tesouro do significante’.” [6]
O grande Outro (A), o tesouro significante, comparece nesta cadeia em sua antecipação no corpo, nos lugares demarcados pelas bordas. Lacan estabelece no algoritmo da pulsão uma estreita relação entre o corpo pulsional e o simbólico.
A pulsão ($<>D) expressa as operações lógicas possíveis que o sujeito mantém com a demanda do Outro, porém, o próprio sujeito é também efeito desta operação significante, ou seja, é o efeito da articulação na linguagem da demanda do Outro. O que advém da demanda quando o sujeito desaparece diz respeito à pulsão, porque já não há mais como o sujeito reconhecer-se nos significantes que aí aparecem, acontece uma espécie de disjunção entre subjetivação e pulsão.
A pulsão neste grafo é elaborada tão-somente no plano do simbólico, pois tanto o sujeito barrado ($) quanto a demanda do Outro (D) são elementos simbólicos. Apesar da tentativa de Lacan de fazer passar a pulsão nos desfiladeiros do significante, o real ainda escapa, ele não está na fórmula da pulsão. A pulsão insiste como força constante em sua meta de satisfação que ultrapassa o sujeito como efeito significante.
A partir do Seminário 11, Lacan eleva a pulsão a um dos conceitos fundamentais, e concede uma dimensão real ao que é da ordem libidinal com a criação do objeto a. Com o objeto a, Lacan introduz o real – isto é, o gozo.
Lacan aproxima a dinâmica pulsional ao modo de ação de um sujeito acéfalo, e volta a dar relevo ao aspecto econômico da pulsão, com suporte na tensão: “esta articulação nos leva a fazer da manifestação da pulsão, o modo de um sujeito acéfalo, pois tudo aí se articula em termos de tensão, e não tem relação ao sujeito senão de comunidade topológica”.[7]
Miller afirma em Silet – Os paradoxos da pulsão[8] que convém distinguir a pulsão daquilo que ela habita, a função orgânica. E destaca o aspecto de fronteira da pulsão lacaniana a partir dos registros simbólico, uma vez que é estruturada pelo desejo, imaginário e real. A pulsão dá conta da captura do corpo vivo pela linguagem e pela fala. Onde o sujeito não é identificável por um significante, ele pode ser apreendido no nível da pulsão.