Silvia Jacobo - Associada ao CLIN-a “Tu materia es el tiempo, el incesante tiempo, eres…
Reinventar a ideia de contágio: uma convocação ética
Bianca Dias[*]
Diante das imagens de horror que nos são arremessadas cotidianamente desde o início da pandemia, cabe uma pergunta que é um chamado e um desvio: invocar o que há de silêncio nessas imagens e recuar frente ao excesso que delas provém, de forma a não sermos por elas destruídos.
No ensaio “Sideração”, Marie-José Mondzain localiza o que ela chama de uma indústria do espetáculo que anuncia e teatraliza o apocalipse. Como resistir estando diante do terror do inominável ao que a autora denomina uma espécie de imagem epiléptica da própria sociedade?
Penso na palavra contágio e numa forma de subverter a linguagem e recriar uma contaminação pelo desejo, pelo pensamento, pela poesia. Como habitar o espanto sem deixar de valorizar a função utópica da palavra, a função da palavra em sua espessura que recria o mundo, a existência e as imagens?
Uma saída seria lidar com a ambivalência do próprio lugar poético de onde a palavra se erige – metade luz, metade sombra, metade natureza, metade artifício – no corpo a corpo com uma nova e traumática dimensão do tempo.
Um trabalho de luto passa pelo próprio tempo que sobrevive a si mesmo, como no ensaio “O arco e a lira” de Octavio Paz, em que a articulação entre mito, poesia, temporalidade e história cria um pensamento que busca, na tensão dos opostos, a chave-mestra da poesia que cria e recria a linguagem, reconfigurando, através dos múltiplos sentidos que emergem da palavra viva, uma ética e uma estética. Assim como para Lacan, o próprio homem é aquele que traz o sentido à fala. E é pela aposta viva na psicanálise que podemos expandir, transfigurar e transgredir qualquer aprisionamento na imagem e assumir uma condição próxima da poesia que aceita o risco, o corte, o rasgo, um grito para além do sentido.
Como, diante das imagens do fim do mundo, encontrarmos recursos para aquilo que seria impossível de suportar? Na semana que se passou ainda assimilava a imagem da nuvem de gafanhotos como símbolo inequívoco do desastre de uma época, quando fui acordada por fortes rajadas de vento que pareciam fazer tremer o mundo. Na internet, a forma oracular de um mundo caduco, a vertigem furiosa de um final de mundo se esboçava: lanchas e barcos afundando no litoral de São Paulo, telhados voando como folhas de papel pelos céus de Londrina, árvores arrancadas com imensa violência pela raiz, tamanha a força destrutiva de uma nova catástrofe que, agora, se sobrepunha aos gafanhotos.
Imagens são reviradas por dentro, devassadas, vasculhadas pela incidência feroz de um real que insiste. Diante de nossos olhos, o fim de um mundo se erige: uma desaparição e uma aparição. Se Freud revelou em “O mal estar na civilização” que aquilo que fixa o ponto originário de uma sociedade aponta também o lugar das rupturas, convém perseguirmos poeticamente o mistério dos escombros, das ruínas e dos ventos para que, do tremor, possamos renascer como sujeitos.
O poeta e ensaísta Christian Prigent diz que a poesia é a simbolização de um buraco, de uma perda, de um fim. E acrescenta: esse buraco, eu o nomeio real. Real entendido aqui no sentido lacaniano: o que começa onde o sentido para. Em uma aproximação com a psicanálise, revisita o conceito lacaniano do real. No poema de Prigent “Lucrécio na janela” o real é parte fundamental. É um poema que percorre o vazio das coisas do mundo “em via de nascer”. É como ele explica, de forma enigmática, a palavra em seus desmoronamentos, como anúncios obscuros de um novo mundo de conflito e tensão.
Do território vertiginoso de uma pandemia que nos atinge e de dentro de um tempo de desencantamento, no qual não é mais possível construir uma imagem do mundo orientada por pontos fixos cabe-nos a tarefa de sustentar a chama do desejo nessa fissura instável, quase intolerável. Cabe-nos a tarefa de articular o inarticulado, recuperando uma experiência de beleza por meio da palavra, como nos lembra Gérard Wajcman no livro “Lacan: o escrito, a imagem”:
É que Lacan, ao inscrever o objeto a, inscreveu no discurso analítico aquilo que responde ao impensável do pensamento, e fez o irrepresentável entrar na representação, a ausência entrar na presença. O objeto a é a resposta, uma pequena letra com a qual Lacan inscreveu, na psicanálise, que o irrepresentável, que o impensável aconteceu nesse século.
Um novo mundo também se esboça nos contornos daquilo que ainda não se pode nomear, mas é no encontro-limite com a impossibilidade de dizer que a palavra instaura a diferença, a divergência, a irrupção de algo para além da catástrofe.
Lançados à vertigem de imagens tão absurdas, podemos paradoxalmente ser despertados para o mais agudo e essencial da condição humana, para a brecha que nos faz sujeitos. São imagens que fazem ressurgir o mundo e denunciam a ilusão de domínio que tínhamos de nós mesmos e da existência.