Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Pontuações sobre o sujeito da ciência, o sujeito da psicanálise, a verdade e o saber em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”
Fabiola Ramon (EBP/AMP)
Nesse escrito de 1960, Lacan segue na logificação da invenção freudiana do inconsciente a partir da estrutura da linguagem. Daí decorre o sujeito dividido, “estado de fenda”.
A psicanálise como “o advento de um novo sismo” desde a entrada da ciência no mundo, fez revelar o inconsciente como discurso do Outro. Cito Lacan: “mas, se a história da Ciência, em sua entrada no mundo, ainda é para nós suficientemente palpitante para que saibamos que nessa fronteira [entre verdade e saber] algo se mexeu naquele momento, talvez seja aí que a psicanálise se destaca, por representar o advento de um novo sismo”[1].
Para chegar a esse ponto, Lacan localiza a dimensão do sujeito da ciência e da fenomenologia hegeliana, marcando diferenças em relação à psicanálise no que concerne ao saber e a verdade.
“Nossa dupla referência, ao sujeito absoluto de Hegel e ao sujeito abolido da ciência dá o esclarecimento necessário para formular em sua verdadeira medida a dramaticidade de Freud: reingresso da verdade no campo da ciência, ao mesmo tempo em que ela se impõe no campo de sua práxis: recalcada, ela ali retorna” [2].
É sobre o trecho acima destacado que trago minhas contribuições. Iniciarei contextualizando o momento do ensino de Lacan e trarei algumas referências para aprofundar o trabalho.
Aqui temos Lacan da primazia do simbólico, que atribui ao estruturalismo “a competência de tornar lógico o movimento dialético feito por Freud”[3]. Nesse empenho, o acompanhamos avançar em suas formalizações lógicas, a partir da matemática, antropologia e sociologia, distanciando-se da primazia do imaginário. Dialoga com diversos campos, além de marcar a diferença entre psicanálise, psicologia e ciências humanas e os caminhos psicologizantes de alguns pós-freudianos.
Há um esforço no método lacaniano, que apesar de destacar pontos divergentes em relação a ciência moderna, localiza a psicanálise a partir dela.
Sujeito da ciência e sujeito da psicanálise
No escrito “A ciência e a verdade”[4], referência importante para aprofundar o ponto destacado, Lacan discorre sobre a estrutura da verdade como causa em diferentes discursos.
Localiza a Física como fundadora da ciência moderna, que se imiscuiu ao mundo e operou mudança radical na posição do sujeito, inaugurando essa posição e a reforçando. Destaca como correlato essencial da ciência, o advento do sujeito do cogito cartesiano, da dúvida metódica.
Cito Lacan: “esse correlato, como momento, é o desfilamento de um rechaço de todo saber, mas por isso pretende fundar para o sujeito um certo ancoramento no ser, o qual sustentamos constituir o sujeito da ciência em sua definição” [5].
Descartes busca a verdade a partir da dúvida. Seu método se assenta na cisão entre sujeito e objeto, pensamento e existência, base do pensamento científico.
Penso, logo existo. O cogito é a certeza que o sujeito pensante tem da sua existência enquanto tal. Tudo o que existe, e o homem é capaz de conhecer, tem uma razão ou causa.
Lacan afirma que seria impensável a descoberta do inconsciente antes do nascimento da ciência. A marca que a psicanálise traz da ciência não é contingente, mas lhe é essencial, afirma Lacan. “A práxis da psicanálise não implica outro sujeito senão o da ciência”[6].
Sandra Grostein[7], em dissertação de mestrado sobre “A ciência e a verdade” destaca que um dos objetivos de Lacan naquele momento era precisar a divisão constitutiva do sujeito da psicanálise. A logificação impressa por Lacan à divisão subjetiva freudiana articulou o descentramento do sujeito ao próprio efeito do significante, que, por sua vez, remete o sujeito para outro significante, produto da linguagem, que fala nele. O inconsciente é tomado naquele momento, como efeito da linguagem.
Em Posição do Inconsciente, Lacan afirma: “com o sujeito, não se fala, isso fala dele” […] o Outro é a dimensão exigida pelo fato de a fala se afirmar como verdade”[8]. É na medida que a cadeia significante se articula, que a fala se endereça ao Outro, que isso fala dele, eis aí o que se abre para o advento do sujeito da psicanálise.
Em “A ciência e a verdade” Lacan faz um longo trabalho de diferenciação do objeto da psicanálise e o suposto objeto da psicologia e das ciências ditas humanas, tendo como ponto dessa diferença o conceito de sujeito: “o sujeito está, se nos permitem dizê-lo, em exclusão interna a seu objeto”[9] (p. 875). Este ponto nos ajuda a compreender a relação entre o sujeito da psicanálise e o sujeito do cogito.
Sandra Grostein afirma que Lacan “recupera no cogito a divisão entre saber e verdade própria ao sujeito da psicanálise”[10], estabelecendo um paralelo entre o sujeito racional da ciência e o sujeito dividido da psicanálise, e conceitua essa divisão a partir do estruturalismo e da lógica.
Segundo Miller, “a relação dos dois [sujeito da ciência e da psicanálise] não é puramente disjuntiva, é a sede do paradoxo na medida em que a ciência e a psicanálise são unidas por sua relação ao sujeito da ciência. A psicanálise parece ter qualquer coisa de ciência, a saber seu sujeito, o mesmo, demonstrado numa referência a Descartes. Porém, ao mesmo tempo, a psicanálise se opõe à ciência pelo fato de que a ela caberia a verdade”[11]. A prática analítica invoca a verdade.
Maria Cecília Ferretti traz uma importante contribuição: “o sujeito sobre o qual operamos em psicanálise só pode ser o sujeito da ciência, mas se este é o sujeito chamado para a análise é porque se trata de subvertê-lo. Ele é chamado e subvertido, pois se Descartes chegou a estabelecer a consciência como constituidora da ordem das coisas, a psicanálise estabelece o inconsciente para mostrar que “o sujeito pensa onde não é, é onde não pensa”. Ela vem mostrar que o “eu não é senhor em sua própria casa”, o inconsciente mostra um sujeito sem clareza de seus próprios pensamentos”[12].
O sujeito da ciência é, portanto, apartado do mundo, inscreve e coloca em cena a cisão entre verdade e saber. A psicanálise nasce desse sujeito apartado do mundo e demonstra que além disso, o sujeito também é apartado de si. O status do sujeito da psicanálise está no intervalo entre o ser e o pensar. É a partir desta cisão que a questão da verdade e do saber se reconfiguram no discurso da psicanálise.
Verdade e saber
É na cisão entre verdade e saber que o sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência se localizam. A diferença está em como cada uma articula “verdade como causa e o saber posto em prática”.
A psicanálise invoca a verdade, tomando-a como causa, o que Freud forjou como estatuto do inconsciente, “deixar a verdade falar”. Já a ciência, sutura o sujeito que esta implica.
Na ciência, há uma potência de verdade a ser descoberta. No entanto, a verdade não tem lugar de causa: “da verdade como causa, ela não quer saber nada”[13].
Na psicanálise, o sujeito dividido é posto a trabalho, o saber produzido se dá a partir disso. O estatuto da verdade é não todo, a verdade está no lugar de causa e sua incidência se dá por meio de seus efeitos.
Já para a ciência, o sujeito está forcluído, fora do discurso. Lacan afirma que a consequência disso seria uma “paranóia bem-sucedida”[14]
A partir disso, podemos pensar nos atuais efeitos de degradação da vida subjetiva[15] decorrente da forclusão do sujeito no discurso, e do seu retorno para o campo da própria ciência, na forma do negacionismo científico, efeito do relativismo e do perspectivismo dos tempos atuais. Esse relativismo, como aponta Miller[16], se relaciona com a forma como a verdade se articula ao saber no contemporâneo, desvinculada de qualquer causa.
Todo esse desenvolvimento de Lacan daquela época parece ser o germe do que, no seminário 17, formaliza localizando o discurso do mestre como Outro da psicanálise, seu avesso. A potência subversiva da psicanálise, afirma Miller[17], está em interpretar esse discurso. Está aí uma das dimensões da verdade, a verdade recalcada. Nesse sentido, a práxis da psicanálise se coloca como um analisador do discurso do mestre. E hoje, do que se trata?
Se o discurso da psicanálise interpreta o discurso do mestre colocando os efeitos de verdade do sujeito dividido a trabalho, como pensamos na dimensão da verdade a partir de nossa práxis atual, nos casos que nos chegam, principalmente aqueles que Miller bem denomina de sujeitos desbussolados?
Proponho que tomemos “Uma fantasia”[18], de Miller, que formaliza sobre a subida do objeto a ao zênite social e a convergência do discurso da civilização hipermoderna e o discurso da psicanálise, produzindo sujeitos desinibidos. Ele aponta que no discurso da civilização o saber está no lugar da verdade/mentira, na noção de que ele não passa de semblante, levando a um perspectivismo e, consequentemente, a uma desagalmatização do saber.
Como pensar na potência subversiva da psicanálise quando ela já está imiscuída no discurso da civilização hipermoderna?