BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
PONTUAÇÕES LACANIANAS SOBRE Ⱥ VERDADE DE DESCARTES
Mirmila Musse
Membro da EBP e da AMP
Lacan recorre ao cogito cartesiano em diferentes momentos de seu ensino para construir a noção de sujeito em psicanálise. Longe de fazer declinação teórica ou cronológica, sirvo-me de alguns diálogos entre ele e Descartes para pontuar questões sobre o tema da verdade.
Já em Freud, o sujeito não é considerado “dono de sua morada”, pois o inconsciente perturba a clareza dos pensamentos. Com Lacan é evidente o esforço para distinguir o sujeito da psicanálise daquele da psicologia dita humanista, que determina o “ser do sujeito” baseado na universalização e na subjetividade. Com Descartes e Freud, Lacan encontra a modalidade de sujeito baseada na certeza[1] quando, partindo da dúvida, é possível chegar a uma verdade.
O cogito cartesiano inaugura uma nova concepção de sujeito enquanto instância de produção de verdade ontológica e metafísica[2]. Nasce a partir disso, segundo Lacan, o sujeito da psicanálise, já que tanto um quanto outro tomam como ponto de partida a certeza: “Face à sua certeza, há o sujeito, de quem lhes disse há pouco que está aí esperando desde Descartes. Ouso enunciar, como uma verdade, que o campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da emergência do sujeito cartesiano”[3]. Descartes é quem inaugura a noção de sujeito, e isso possibilita a descoberta do inconsciente por Freud.
Lacan faz um tensionamento, aproximando-se e distanciando-se, da concepção de sujeito baseada na noção filosófica de corpo e alma. O sujeito é dividido pela linguagem – pela incidência do significante no desejo –, mas também pela pulsão – incidência do significante no corpo. O fundamento primeiro da divisão do sujeito é a castração, seja pela interdição do gozo pela linguagem, ou pela pulsão sexual, no corpo. Já de início há uma desarmonia constitutiva, e não constituída, que é inerente ao sujeito[4]. Ele, a princípio, também não é autônomo em relação ao seu próprio desejo, pois está alienado ao desejo do Outro.
Descartes auxilia Lacan a justificar sua discordância relativa à constituição do sujeito psicológico baseada na origem subjetiva do sujeito: “Foi somente Descartes que permitiu a depuração do sujeito, ao mesmo tempo sua localização simbólica e sua redução a um só enunciado: um sujeito despojado de todos os seus ouropéis psicológicos tal é o ‘penso’ cartesiano que Lacan vai utilizar”[5]. Tanto na filosofia cartesiana quanto na psicanálise, o Outro é quem garante uma localização simbólica, instituindo as normas subjetivas a partir de uma suposta garantia da verdade oferecida pelo Outro.
No cogito cartesiano, Deus, não enganador, cria as verdades eternas que sustentam os axiomas dos seres humanos. Para a psicanálise, o inconsciente é portador de uma verdade que é necessariamente intrínseca à linguagem e à lei do Outro. Mas as semelhanças vão além da inscrição do sujeito no simbólico. A verdade, nos dois casos, é somente uma suposição de saber no Outro e não a garantia dela.
A partir de uma carta de Kepler, escrita em 1599, Miller localiza que nessa época havia um ponto de capiton entre o saber da ciência e o saber religioso. O acesso ao saber da ciência pelos mortais tem o mesmo peso do acesso do conhecimento divino, como um acesso sagrado: “Quando entregamos este conhecimento científico, comungamos com a divindade”[6]. Mas, segundo Miller, diferente de diversos outros filósofos, Descartes não comunga da mesma relação com verdade Divina, pois ela não vai em direção ao sagrado. Apesar da verdade direcionar o axioma do sujeito, ela não tem valor divino. Assim como a verdade do sujeito, existe a de Deus e elas são da mesma ordem. Se Deus também não sabe tudo, ele também é constituído por uma falta em sua estrutura, um Ⱥ e uma verdade não toda[7]. Ou seja, nesse ponto, há uma semelhança entre a verdade cartesiana e a da psicanálise, pois nenhuma das duas garante alguma verdade, mas a suposição de saber sobre ela.
Grosso modo, a concepção de sujeito de Lacan e Descartes aproximam-se de três maneiras[8]: não há certeza sem a ilusão primeira no Outro; só é possível pensar o sujeito a partir da suspensão do saber – questionando a verdade e o saber; a certeza decorre da dúvida, num lapso no tempo, quando há o desvanecimento do sujeito. Lacan aproxima o sujeito da psicanálise ao de Descartes pela noção da verdade: “O sujeito, o sujeito cartesiano, é o pressuposto do inconsciente, como demonstramos no devido lugar. O Outro é a dimensão exigida pelo fato de a fala se afirmar como verdade. O inconsciente é, entre eles, seu corte em ato”[9]. O cogito cartesiano propõe o acesso à verdade, assim como para a psicanálise, quando a fala afirma-se como verdade.
É do questionamento do saber vindo do Outro que a verdade pode emergir. Partindo da “rejeição de todo saber subjetivo que vem à luz da verdade”[10], Descartes chega ao cogito cartesiano “penso, logo existo”. No momento de suspensão do saber, ali entre o saber e a verdade, na certeza da dúvida, o sujeito é. Ele é onde pensa. Mas ser não garante a verdade, e foi preciso recorrer a um “Outro que não seja enganador e que, por cima de tudo, possa garantir, só por sua existência as bases da verdade (…) e a dimensão da verdade (…) pois o que quer que ele tenha querido dizer, sempre será verdade – mesmo que ele dissesse que dois e dois são cinco, isto seria verdade[11].
O erro[12] de Descartes, segundo Lacan, foi supor que o conceito de certeza seria garantido “por inteiro” na cogitação do pensar, e mais do que isso, “Dizer que ele sabe alguma coisa dessa certeza. Não fazer do eu penso um simples ponto de desvanecimento”[13]. Se Descartes inaugura o conceito lacaniano de sujeito suposto saber, é justamente porque ele não supôs que o ser do sujeito é garantido na falta, no erro e na dúvida. Seria como se Descartes tivesse recuado da ideia do sujeito constituído a partir da dúvida e partido em direção à garantia da verdade garantida por Deus.
Há ainda uma outra contradição no pensamento cartesiano, segundo Lacan. Se Descartes funda o sujeito da ciência, ele funda a antinomia cartesiana no fato de que o discurso da ciência moderna faz desaparecer o sujeito. Não há sujeito fora da ciência, já que é ela quem funda a concepção de sujeito. Em contrapartida, ela exclui o sujeito. “O paradoxo em questão é que enquanto a lógica moderna tenta suturar o sujeito da ciência, ela mostra-se definida pela impossibilidade do esforço de suturá-lo”[14], já que o sujeito se caracteriza exatamente pela impossibilidade de sua apreensão integral. A ciência “esquece as peripécias em que nasceu uma vez constituída, ou seja, uma dimensão de verdade, que é exercida em alto grau pela psicanálise”[15].
Lacan questionará o dualismo cartesiano da substância constituinte do sujeito, a saber a substância pensante e do corpo. A substância pensante é correlata evidentemente ao inconsciente, mesmo que a existência do sujeito proceda da fala e não do pensamento. A estrutura de linguagem é elaborada não pela substância, mas pelo significante. Este não é uma substância que pode ser concebida em si mesmo, mas pelo contrário, relativa a um outro significante. Enquanto o sujeito cartesiano está ancorado no ser, o sujeito lacaniano se constitui pela falta, falha e tropeços no discurso. Lacan transforma o “penso, logo sou” em “eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar”[16].
Já a substância do corpo introduz a unidade do corpo vivo. Miller[17] lembrará que em psicanálise quase não se utiliza a palavra substância, mas, empregando o termo de Descartes, poderíamos dizer que o gozo seria o atributo principal dessa substância relativa ao corpo, porque dele só se pode saber que se goza. Miller desconstrói a ideia de Descartes de duas substâncias para concordar com a leitura que Lacan faz do conceito de substância a partir de Spinoza: a substância é em si mesmo seu conceito, e não requer outro para ser formado. Não existiria duas substancias gozosas, uma da incidência da linguagem, e uma do corpo. Segundo Miller, é por isso que Lacan pôde dizer que o significante é a causa do gozo assim como o significante é a causa do sujeito[18].
O lugar da verdade para psicanálise lacaniana é definido por um vazio e pode ser ocupado por uma verdade mentirosa, que se esvai num segundo tempo e que, por consequência, nunca é idêntica a ela mesmo. Não se trata de uma impotência da significação, mas de um impossível. O que interessa, portanto, é justamente o que pode ocupar esse lugar vazio: “O problema posto no centro está contido nestes termos: o ser do sujeito (…). Que o ser do sujeito é fendido, Freud só fez redizê-lo de todas as formas, depois de descobrir que o inconsciente só se traduz em nós de linguagem, que tem, pois, um ser de sujeito. (…) Percebe-se daí que o ser do sujeito é a sutura de uma falta.”[19]. O que sutura a falta e também causa o desejo são as duas faces do objeto a.
Lacan fará uma reviravolta no cogito cartesiano a partir da antinomia do ser e do pensamento, pela negação lógica: “ou não penso ou não existo”[20]. O sujeito se apresenta tanto por uma divisão pelo próprio significante quanto pelo objeto a: “o ser do sujeito desalojado do ‘penso’, é doravante situado pela experiência analítica do gozo enquanto não inteiramente subjetivável”[21]. A inclusão do objeto a assegura a existência do sujeito mesmo que por um vazio.
Dessa forma, o sujeito, o sujeito do inconsciente, está na própria divisão entre saber e gozo, “a partir do simbólico que se dirige ao real, e o real responde! (…) O sujeito é a resposta do real”[22]. A partir daí, Serge Cottet formaliza o sujeito a partir do que poderíamos chamar de cogito lacaniano: Em relação à pergunta cartesiana: “‘que sou?’. E a resposta ‘uma coisa pensante’, há a lacaniana: ‘que sou no desejo do Outro?’. E a resposta do real: ‘o objeto a’”[23].