Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
Política do sintoma e extravio[1] do gozo
Miquel Bassols (ELP)
“No desatino de nosso gozo, só há o Outro para situá-lo, mas na medida em que estamos separados dele. Daí as fantasias, inéditas quando não nos metíamos nisso.
Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo, eis o que só seria possível não lhe impondo o nosso, não o tomando por subdesenvolvido.
Somando-se a isso a precariedade de nosso modo, que agora só se situa a partir do mais-de-gozar e já nem sequer se enuncia de outra maneira, como esperar que se leve adiante a humanitarice de encomenda de que se revestiam nossas exações?
Deus, recuperando a força, acabaria por ex-sistir, o que não pressagia nada melhor do que um retorno de seu passado funesto.” (Jacques Lacan: “Televisão”, Outros Escritos, Jorge Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2003, p. 533.)
Uma política do sintoma também se orienta por esta resposta que Jacques Lacan deu a Jacques-Alain Miller, em um documento que mantém sua atualidade. A pergunta era sobre a indicação que Lacan fizera nos anos 60, tão inclinados aos ideais do humanismo, a respeito da ascensão irrefreável a ser esperada do racismo e das diversas formas de segregação social.
Nos extraviamos em nosso gozo, na adição com a qual ele se alimenta a cada dia. Há que se insistir ainda? Qualquer um pode denunciá-lo sem perceber o combustível que aporta para alimentar, ao mesmo tempo, esta maquinaria infernal. A pulsão de morte, dizia Freud, realimentada pelo imperativo do supereu: “Goza, goza sempre um pouco mais!” Ultrapassado o limite, não há mais bordas quando se trata de gozar. Este seria um assunto que somente importaria a cada um, se não fosse pelo fato desse imperativo ser correlativo ao rechaço que se alimenta, ao mesmo tempo, daquilo que percebemos como o gozo do Outro. Mas é, precisamente, unicamente este Outro que podemos ter como referência, como bússola para distinguir e situar nosso modo de gozar; inclusive para limitá-lo, para ter em conta a perda necessária que isso implica, e não ser somente um ser-para-a-morte, ofertado à pulsão de morte.
Deste Outro do gozo, estamos necessariamente separados, é um Outro radical, tão radicalmente Outro que chega a nos parecer inumano. Mas, de fato, é tão inumano como nosso próprio modo de gozar. E ao Outro, quando o fazemos existir como Outro, nosso modo de gozar também lhe parecerá inumano? Tudo isso se cristaliza em fantasias mais ou menos perversas, mais ou menos adequadas ao prazer de cada um, fantasias com as quais tentamos interpretar o modo de gozar do Outro quando nos parece inumano. São fantasias inéditas que nos parecem absolutamente originais e nunca vistas, até que nos metemos nisso que chamamos agora, devido a uma fantasia precisamente, de “multiculturalidade”. O que quer dizer: os modos de gozar do outro me parecem estranhos, mas somente são estranhos a minha fantasia, segundo a forma com a qual interpreto meu próprio modo de gozar.
Deste gozo e deste Outro, o melhor é dizer que não quero saber nada, melhor dizer-me isso do que pensar ingenuamente que sei mais do que ele a respeito desse gozo do qual não quero saber nada. Então, o que devo fazer com este Outro, ao mesmo tempo tão estranho e tão familiar, uma vez que reconheço aquilo que não queria saber de mim, do meu gozo? “Deixar esse Outro entregue a seu modo de gozo…” seria uma saída possível, deixá-lo entregue a seu próprio modo de gozo, e que ele me deixe com o meu, cada um em seu tonel, como um par de Diógenes, cada um em seu cinismo, sem que cada um veja o furo por onde flui seu des-ser, e o do Outro.
De fato, essa era a observação de Claude Levi Strauss que alarmou a UNESCO em duas intervenções que constituíram um marco: a separação entre as culturas era uma bússola melhor do que os ideais vaporosos da multiculturalidade mesclada, ideais que parecem finalmente destinados a segregar ainda mais o gozo do Outro. O turbilhão de reações que causou é conhecido. Sua segunda intervenção, “Raça e cultura”, foi ouvida em 1971, com um mal-estar especial por parte de alguns defensores do universalismo e da integração entre as culturas. O ideal de tolerância recíproca quando se trata dos modos de gozar, o ideal de uma reciprocidade entre o gozo de cada ser falante e o gozo do Outro se mostram impossíveis de sustentar. É o que Lacan pôde elaborar a respeito do gozo, como um registro radicalmente diferente do desejo, sempre desejo do Outro. O gozo, pelo contrário, nunca é o gozo do Outro. Cinquenta anos depois, na época da chamada globalização, a observação antropológica de Lévi-Strauss parece o mais atual. Lévi-Strauss já intuía, naquele momento, as condições da impossibilidade de uma reciprocidade entre diversos modos de gozar, e o fazia recorrendo à noção lacaniana do “gozo do Outro”, ainda que não escrevesse este Outro com maiúscula, nem citasse explicitamente Lacan: “a tolerância recíproca supõe realizadas duas condições que as sociedades contemporâneas estão mais longe do que nunca de conhecerem: por um lado, uma igualdade relativa e, por outro, uma distância física suficiente […] Porque não se pode, ao mesmo tempo, fundir-se no gozo do outro.”[2] Quando se trata do gozo do Outro, a igualdade é sempre relativa à fantasia de cada sujeito, segundo o que deste Outro lhe pareça semelhante em relação à própria imagem que tenha si mesmo e de seu modo de gozar. Por outro lado, quando este Outro se faz presente de um modo que se torna intrusivo, a distância física parece o único recurso possível. “Distanciamento social”, como é chamado nestes dias de pandemia, confundindo o sujeito da linguagem e do gozo com seu corpo.
A dimensão do gozo do Outro, a suposição de uma diferença radical do modo de gozar dos outros, assume um relevo especial quando se trata da tolerância recíproca entre coletivos que se pensam diferentes. É aí onde a observação de Lacan adquire sua dimensão política. O ideal de reciprocidade dos modos de gozar tem um preço, um preço muito alto quando passamos da “psicologia individual” à “psicologia de grupo”, para retomar os termos de Freud em sua “Psicologia das massas e análise do Eu”. Chega o momento inevitável em que o gozo do Outro, o gozo como alteridade, é impossível de ser reduzido ao semelhante, àquilo que a fantasia considerava como homogêneo à própria imagem e ao próprio modo de gozar. E aí faz-se presente aquilo que do Outro não é homogêneo à fantasia, faz-se presente a dimensão do próximo como impossível de reduzir ao semelhante. Então, a irrupção do gozo do Outro nos mostra que nosso próprio gozo não estava tão orientado como parecia, que nosso modo de gozar segue tão à deriva como qualquer outro. É quando o modo de gozar do outro pode ser considerado como uma forma subdesenvolvida, tal como indica o termo de Lacan. O fenômeno do etnocentrismo, tão bem isolado pela antropologia como um fenômeno geral de todas as culturas, tem aqui sua raiz. Queremos impor ao outro, o qual consideramos então um subdesenvolvido, nosso modo de gozar, seguindo, por vezes, um ideal humanitário. Mas, para manter mais secreta ainda a causa das exações do nosso modo de gozar.
O termo “exação”, utilizado por Lacan, tem várias conotações. Em espanhol[3] é um termo jurídico que designa a ação de exigir o pagamento de impostos ou de tributos. Podemos falar, por exemplo, de uma exação ilegal como o delito cometido por uma autoridade ou por um funcionário público, ao exigir o pagamento de impostos não autorizados devidamente, ou ao exigir direitos superiores aos que lhe são assinalados no exercício de suas atribuições. Em francês, “exactions” inclui o sentido de exigir, geralmente pela força, o pagamento daquilo que, na realidade, não se deve ou um pagamento superior ao valor devido. Por extensão, uma “exação” é um maltrato, um ato de violência em todas suas formas possíveis. Digamos então que somente consideramos o outro como um subdesenvolvido, afetado de um modo de gozar e de viver inferior ao nosso, para exigir-lhe que pague por nosso modo de gozar. E assim tamponar nossas próprias exações, as do nosso modo de gozar.
E aqui começa o racismo, aqui começa a lógica da segregação do não semelhante, do Outro que pode chegar ao ponto de querer sua exterminação sistemática, tal como a Europa a conheceu nos tempos do fascismo. E isto é algo que não se corrige com nenhuma boa pedagogia, com nenhum humanismo, por mais bondoso que se queira. A fantasia do gozo do Outro é o limite das melhores intenções pedagógicas e humanitárias. Ao fracasso do princípio do prazer descoberto por Freud, é preciso acrescentar agora o fracasso do princípio do gozo, mais espinhoso ainda.
Máquina infernal, com efeito. Acrescenta-se ainda, para azeitar seu mecanismo, um fato hoje incontestável: nosso modo de gozar é, como assinala Lacan, tão precário que ninguém pode duvidar, já que leva por si mesmo ao desastre ecológico, à falência econômica e a um aumento progressivo das desigualdades, com os efeitos de segregação implicados. A lógica do discurso capitalista se alimenta deste mecanismo que Marx descobriu como a produção da mais-valia, mais-valia que é de fato um mais-de-gozar, sempre um pouco mais. Disso Marx vislumbrou a forma sintomática, por exemplo, quando fala do fetichismo da mercadoria. Lacan reconhece a importância desta descoberta marxista e desenvolve suas consequências: a cada um seu gozo, a cada um seu sintoma, sua própria maneira de extraviar-se no gozo. De fato, o mais-de-gozar é hoje a bússola, o objeto que ocupa o lugar de comando, o objeto que vem no lugar do significante Mestre, uma vez que os diferentes significantes Mestres têm caído do seu lugar de autoridade, um após o outro. E o significante “democracia” não será o último a cair.
A Humanidade também tem sido um significante Mestre para uma política do gozo que não pode reconhecer em si mesma a maquinaria infernal do mais-de-gozar. O recurso ao Humanismo, que atravessou o Ocidente desde o Renascimento até a Segunda Guerra Mundial, ficou, para Lacan, inevitavelmente reduzido a um “humanitarismo”, em uma “humanitarería”[4] se queremos transportar ao espanhol o irônico neologismo que inventa aqui – humanitairerie. Não deixa de ser outra forma de justificar um modo de gozar que não quer saber nada da segregação que ele engendra. E hoje, pode ser muito bem em nome deste humanismo uma forma de se impor um modo de gozo ao outro. Ainda que seja com a pretensão de salvá-lo. Sim, mas salvá-lo de quê e para quê? Salvá-lo para fazê-lo tão servo, como nós mesmos, da maquinaria do nosso gozo? Cuidado então com o humanitarismo. Pode ser somente uma forma de revestir com um bom ideal a exação do meu próprio modo de gozar, impondo-o aos demais, que pretendo salvar do seu.
A história das religiões é o melhor exemplo deste mal-entendido estrutural entre os modos de gozar, das diversas versões daquilo que se considera, em cada caso, a melhor maneira de gozar do Outro. Com todos seus paraísos prometidos. Em relação ao gozo, podemos considerar-nos todos, e cada um, religiosos. Começando por Diógenes que optou pelo gozo solitário em seu tonel. Ou dito ao modo freudiano: a religião só é uma forma coletiva da neurose individual. E existem tantas quantas queiramos para alimentar “os deuses obscuros”, como Lacan os denominou, sempre dispostos, com seu retorno, a pedir o sacrifício do sujeito ou de todo um coletivo, se for preciso, à fantasia do gozo do Outro.
A psicanálise descobriu que o sintoma – o sintoma que se aninha no mal-estar da civilização – é aquilo que pode deter[5] este mecanismo infernal que hoje vemos funcionar em escala coletiva. A singularidade do sintoma implica em si mesma um modo de gozar que não se reconhece como tal e que é preciso decifrar para que o sujeito possa tolerá-lo e saber fazer algo com ele além de sofrê-lo. É por isso que Lacan também pôde dizer que a psicanálise é uma política do sintoma[6]. Não do sintoma que é preciso fazer desaparecer a qualquer preço, mas sim do sintoma como portador de uma verdade do sujeito de nosso tempo, do seu mais-de-gozar.