Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
O syngué sabour[1] de uma mulher
Patricia Badari (EBP/AMP)
“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra”[2]
Sabemos o que é ser um homem ou uma mulher no Afeganistão? Sim, se tomarmos pelo viés religioso, pelas tradições, pelos valores, pelos significantes amos, pois estes orientam, organizam e dão sentido à existência, à vida. Mas, se formos ser mais precisos, talvez só saibamos o que é ser um marido, um herói, um pai, uma esposa, uma mãe – papéis, identidades dos sujeitos emitidos pelo Outro – a sociedade, a cultura, a religião, por exemplo, o islamismo. Ou seja, pela via do discurso do amo, podemos saber o que um homem e uma mulher devem fazer, pensar, como devem gozar, reproduzirem-se; podemos saber sobre a posição viril de um sujeito, sobre sua posição em relação à autoridade paterna.
“Em algum lugar do Afeganistão ou alhures”[3]
No Afeganistão um herói é aquele que luta por seu país e em nome de Alá. E este herói é o marido ideal para uma jovem afegã. E, nossa jovem-personagem, embora nunca o tivesse visto ou ouvido sua voz se encanta e se orgulha deste nome: o Herói. O noivado é logo arranjado pelos pais de ambos, e como a guerra demora a terminar é melhor que a jovem se case, mesmo que o noivo-herói esteja ausente. Assim se dá o casamento, a noiva de corpo presente e o belo noivo-herói presente em fotografia.
O noivo-herói só retorna para casa após três anos do casamento. Encontram-se pela primeira vez, inclusive na cama. E ela, que está menstruada, com o corpo impuro, segundo a tradição do islã, não fala nada ao marido, pois se não houver sangue como provar sua virgindade resguardada pelos pais e pela sogra, após o matrimônio? A noite de núpcias se realiza. E o marido-herói vê o sangue e fica maravilhado e orgulhoso. Um herói, digno deste nome!
Um herói que sabe segurar, portar, manipular uma arma sobre seu corpo, que sabe se mover nos campos de batalha. Um homem cuja religião lhe ensinou a lidar com seu corpo e com o corpo da mulher. Ele sabe do gozo do macho, o que é permitido ou proibido, quando se pode transar ou não… Ele sabe que a esposa é um pedaço de carne para onde vão seus fluídos, um ventre para gerar filhos e ele é o esposo, o valente, másculo, viril e portador da honra. Um homem cuja paixão é paixão de morte.
Ela também sabe o que é ser mulher e esposa no Afeganistão. Sabe que uma moça deve se casar virgem e dar provas de sua virgindade. Sabe que uma esposa deve procriar e que um herói não pode decair deste lugar ao ser estéril. Então, passados meses após a efetivação das núpcias, quando a gravidez não acontece, ela logo vai buscar uma solução com sua tia – mulher que por não ter podido procriar foi trocada pelo marido, excluída da sociedade e tornou-se puro dejeto. Em sabendo dos interditos, do sentido religioso, dos papéis e tradições; em sabendo do que regula o gozo, não nega estes semblantes, pois negá-los seria ir em direção ao pior.
Mas, se esta jovem nada sabe dos homens, da vida de casal – quer saber! Contempla seu marido-herói-homem, olha-o… Como amar um herói, uma presença vazia e um corpo desajeitado? O medo do primeiro encontro com o marido, torna-se excitação. Ela não se furta de seu corpo, das experiências únicas que marcam esse Um-corpo.
Ela sabe que “no meio do caminho há uma pedra” e que a potência paterna tropeça nela, neste objeto a como inominável, irredutível à simbolização e manter-se pela via do sentido a levará ao seu destino de mulher afegã. Logo, subverte seu destino de mulher como um pedaço de carne e os significantes que marcaram seu corpo, não sem passar pelo homem como conector[4] para ir em direção ao enigma de sua feminilidade corporal.
E é isso que ela nos dá testemunho enquanto cuida de seu marido – o suposto herói que foi lutar por seu país e, ironicamente, volta para sua casa com uma bala no pescoço por uma briga com um companheiro. Um insulto e para defender sua honra – retorna para casa, em estado vegetativo e não como um herói de guerra.
Ela cuida daquele corpo morto, em coma, e fala com ele. Mas, talvez fale menos com ele e para ele. Quem fala ali, talvez não seja o puro sujeito da fala e sim o corpo falante. A voz como objeto a, separada do corpo e um resto não significante, emerge. E esta jovem nos transmite esse objeto a, essa voz separada dela. Sua “voz que lhe soa com um som estranho”[5] e que por vezes emerge “como imperativo, como aquela que reclama obediência ou convicção”[6], em outras vezes como invasiva e em outras ressoando o sentido e o fora do sentido.
Enunciação da solidão radical que habita seu ser falante e de como foi além das identificações do que é ser mulher em sua cultura, como se serviu dos semblantes para ir além do Nome do Pai; como tornou-se Outra para si mesma e se virou com seu impossível.
Pôde ir mais além da problemática da interdição. Fez sua subversão a partir do gozo que não responde totalmente à incidência da interdição – “o gozo feminino como tal, gozo não edipiano e reduzido ao acontecimento de corpo”[7].
Através do homem, seu marido e, também, do jovem soldado gago que arrisca ir em direção ao corpo do Outro e arrisca o encontro com o Outro sexo, através destes, um a um e “(…) sem que haja uma relação recíproca, ela é Outra para si mesma como o é para cada um deles. Nesta alteridade, sem simetria nem reciprocidade, a feminilidade está confrontada ao feminino, ao a-sexuado do ser, sem representação possível”[8].
Talvez esta personagem-falasser em Syngué sabour[9], Pedra-de-paciência, nos dê o testemunho da erótica do seu objeto a – voz. “(…) objeto pequeno a, um objeto suplementar em relação à ordem regulada pelo significante. Pequeno a é a pedra que existe em todo caminho da fala. Em francês, este pequeno a é o osso; aliás, o osso é uma espécie de pedra que há no corpo”[10].