#06 - OUTURBRO 2023
O riso, a fotografia e o objeto a
Marcella Pereira de Oliveira
Associada ao Clin-a
Participante da Comissão de Arte e Cultura das XII Jornadas da EBP-SP
“Quando fotografo, estou tomando um tonificante de vida, de energia”. Walter Firmo.
Uma máquina fotográfica, muitas vezes, pode ser considerada um objeto que causa o sorriso. Nesta fotografia, temos avó e neta, negras, livres, numa festa que convoca ao relaxamento e liberação do prazer. Walter Firmo é um fotógrafo, também negro, cujo estilo é atravessado pela dignificação da raça negra no Brasil. Também foi nomeado de documentarista de festas populares brasileiras, as quais são retratadas partindo de suas pesquisas sobre o folclore brasileiro.
Por meio de um ato aliado a um objeto, o fotógrafo nos conduz a uma experiência vivida no corpo, fora do alcance conceitual, cujo efeito, neste caso, foi o riso; causado pela festa, ou também pela máquina. Ao elevar esta fotografia ao estatuto de obra, o autor nos conduz a uma profundidade, sem que nada seja dito.
Miller[1] faz uma pontuação sobre o ato de fotografar aliado à apreensão do objeto escópico. Ele afirma que o ponto de vista que se toma com relação a uma paisagem, é impossível de ser visto. Porém, “quando se acrescenta uma máquina fotográfica a ela, destaca-se uma espécie de objeto invisível, materializa-se o objeto que é o ponto de vista, que não era visto”. Valéria Erlijman[2], psicanalista que também é artista visual e fotógrafa, descreve sua relação com a fotografia como uma forma de encontrar presença. Uma atividade que pode transformar a dor em intensa felicidade que lhe atravessa o corpo, trazendo vitalidade. Ela descreve sua obra como uma busca de luz e cor, com tonalidade lúdica. A fotografia, junto ao processo de análise, a ensinou a simplesmente saber gozar; é a linguagem pela qual ela se expressa.
Dos Seminários 7, 10 e 11, resgato um percurso de Lacan[3] na dimensão da pulsão e do objeto a. A partir do funcionamento pulsional sob a forma de vasos comunicantes, ele nos conduz a função do objeto como causa. Um objeto como uma torneira aberta, por exemplo, pode causar vontade de fazer xixi, pois somos como vasos comunicantes: nos comunicamos com nossos objetos a nível corporal. Quando um sujeito é capturado no olhar por um quadro, há uma comunicação que opera no espaço entre ambos. Algo do quadro fisga o sujeito, provocando um efeito pacificador, cujo resultado é a deposição do olhar, como alguém que deposita as armas. Concomitantemente, o sujeito faz função de anteparo ao quadro, na medida em que retém a luz que ele reflete.
Marcus André, em O resto e o riso[4], trabalha a dimensão criativa contida na ética da psicanálise, num retorno ao sentido da ação, partindo daquilo que o Outro fez com o sujeito. A sublimação aparece enquanto criação, que pode surgir no desfecho do vazio deixado pela dimensão trágica. Contudo, há um passo a mais a ser dado em relação a esta retificação de sentido pela via de elevar um objeto à dignidade da Coisa; é preciso não inflar a Coisa, de modo a não conduzir à busca pelo sentido no real. Penso que a morte de Antígona ilustra a pureza de um gozo que não alcançou a égide de um saber fazer.
Suponho que é a partir da teorização sobre o objeto a que Lacan alcança uma diretriz sobre a retificação da relação com o Outro. Para falar sobre isso, Marcus André faz uso da poesia. Ele afirma que ela transmite o modo como o Outro afeta o sujeito, por meio de operações ‘erotológicas’ que fazem um objeto a ganhar lugar no Outro reorganizando o campo do desejo”. Sobre esta reorganização, o autor parte da concepção de gaio issaber, uma virtude definida em Televisão[5] como o polo oposto da tristeza, ilustrada no vigor dançarino de Dionísio e na alegria como paixão que aumenta a potência de agir, frente ao que insiste, e nunca consiste. O autor define o gaio issaber como “deixar-se fisgar pelo sentido, sem nele se ‘envisgar’”. Em vez de erigir para nossos objetos a um sentido maior, saber lidar com modo de gozo que se extrai dele:
O gaio saber de Lacan afasta-nos da divinização do vazio, de uma ética do elevamento, sublimatório, da promoção de um fora do sentido etéreo, e põe nossos pés no chão por deixar evidente: o nonsense do riso afasta a apologia do indizível por evidentemente ser impossível sem as palavras.
Concluo apostando na arte de Walter Firmo como uma forma de operação erotológica que parte da pulsão e do objeto escópico, num ato em que, depositando o olhar, o autor modifica a forma de lidar com o gozo advindo do trauma da escravidão. Fisgado pelo sentido, mas não ‘envisgado’, ele retifica o descarte da raça negra por meio de um saber fazer com a sua arte. Na perspectiva de Freud[6], o riso pode ser visto como uma descarga de energia, a qual, liberta de outros processos psíquicos, encontrou livre escoamento. Finalizo com a questão de que a arte pode se alinhar à psicanálise pela via do objeto a e do gozo, trazendo uma nova forma de saber, calcado menos no desvelamento e mais na égide de um fazer.
Walter Firmo, Festa Bumba meu boi, São Luiz, Maranhão, 1994.
Fonte: https://ims.com.br/walter-firmo-audioguia-parada-017/