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O QUE NÃO SE FORMALIZA SE TORNA SOM

Elisangela Miras
Imagem: Instagram @mam.rio

falasser habita a linguagem e tem um corpo que “se goza”: Não é o corpo que fala por iniciativa própria, é sempre o homem que fala com seu corpo, […] ele se serve de seu corpo para falar. […] A fala passa pelo seu corpo e, em retorno, afeta o corpo que é seu emissor […], assim inconsciente e pulsão são equivalentes, têm uma origem comum, que é o efeito da fala sobre o corpo, os afetos somáticos da língua, da lalíngua[1].

A partir da citação acima que se encontra no Eixo 4 das Jornadas, ressoou para mim a fala que passa pelo corpo afetando-o. A partir dessa ressonância, voltei à Freud quando afirma que o eu é primeiro e acima de tudo um eu corporal[2].

Lacan, em seu Discurso de Roma, trata a ordem simbólica como a ordem em que se situa a psicanálise, não em detrimento do imaginário ligado ao estágio do espelho; coloca o imaginário na base da consciência e a estende por toda parte: “o reflexo da montanha no lago, diria eu, talvez desempenhe seu papel num sonho do cosmo, sim, porém nunca saberemos nada sobre ele enquanto o cosmo não tiver saído de seu mutismo”[3].

Para Lacan a noção de eu para Freud, notadamente no texto sobre o narcisismo, é de miragem e desconhecimento, a matriz da agressividade inter-humana; mas é a partir da distinção entre a pessoa que deita no divã e aquela que fala que a análise pode operar.

Lacan busca, neste momento do Discurso de Roma, encontrar o caminho de uma dialética mais rigorosa, e uma delas se tratará mais tarde de S(Ⱥ), que segundo Miller:

Esse matema nota exatamente o significante do inintegrável ao universo do discurso, o significante da heterotopia do suposto universo do discurso. E penso ser possível mostrar como, a cada vez, esses termos diferentes, o sujeito, o objeto, o nome do Pai, o falo, podem ser inscritos nesse lugar, assim como tantas maneiras (…) de ser da falta, de modalizações (…) diversidade do nada (…) é esta concepção propriamente dialética[4].

É esta ordem simbólica que traz o sintoma como mensagem. A este respeito, Tarrab[5] diz que em nossa orientação lacaniana o sintoma começa com um acontecimento concernente à linguagem e termina como um acontecimento de corpo, um corpo perturbado, modificado, marcado pelo Outro e pelo Real.

Segundo Miller[6] o inconsciente é feito de lalangue e seus efeitos vão além de comunicar, porque perturbam o corpo, alma e o pensamento; por outro lado, a linguagem tem a mesma estrutura do discurso do mestre. Há na língua um real rebelde que não se formaliza, que o Outro também tenta capturar, mas que um chiste pode derrubar.

Miller cita Lacan no Seminário XX, quando retrata a linguagem como uma elocubração de saber sobre lalangue, bem como de que há mais coisas na lalangue do que sabe a linguagem.

A lalangue é aquela que a análise libera e desencadeia; é depósito, coletânea de traços de outro sujeito, aquilo do qual cada um inscreveu seu desejo na lalangue, pois o ser falante precisa do significante para desejar e o parlêtre goza de suas fantasias, de significantes. Esta lalangue não se aloja no Outro da linguagem e ela só se sustenta no mal-entendido.

É a partir do mal-entendido que, aquilo que da língua se rebela, faz o som próprio de cada um.  Lalangue de cada um que resulta em uma verdade própria advinda daquilo que toca o corpo?


[1] Miller, J.-A. “Habeas corpus”Scilicet As psicoses ordinárias e as outras, sob transferência, p.16 e 17.
[2] Freud, S. O ego e o id. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1997.
[3] Lacan, J. Discurso de Roma. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998, p.169.
[4] Miller, J.-A. Teoria d’alíngua (rudimento). In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 66.
[5] Tarrab, M. Notas sobre el cuerpo. In: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2072-06962004000100016
[6] Miller, J-A, 1985, op, cit.
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