Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
O inconsciente freudiano e o sujeito do inconsciente
Camila Popadiuk (Associada ao CLIN-a)
Minha pontuação sobre a “Subversão” repousa sobre o “no inconsciente freudiano” contido no título do escrito “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano”[1]. Pretendo destacar que a subversão do sujeito proposta por Lacan é efeito do inconsciente freudiano fundado em uma hiância. Assim, me servirei tanto do escrito “Posição do inconsciente”[2], contemporâneo ao “Subversão do sujeito…”, quanto do Seminário XI[3], pois Lacan, ao retomar os conceitos fundamentais da psicanálise, serve-se daquele texto para enfatizar esta dimensão do inconsciente que ficara esquecida.
Em sua fala introdutória no Colóquio “Psicanálise e subversão das normas”[4], Aurélie Pfauwadel ressalta a importância de desmentir algumas doxas que qualificam a psicanálise freudiana e lacaniana como uma prática normativa. Ela lhe confere, ao contrário, um caráter atípico, na medida em que a psicanálise se interessa por aquilo que está fora de qualquer domesticação, distanciando-a tanto do paradigma do normal e do patológico, quanto de qualquer objetivo adaptativo, seja ele pautado nas concepções biológica e/ou social do normal.
A. Pfauwadel assinala que o ponto subversivo da psicanálise é a maneira através da qual a distinção entre o sujeito do inconsciente e o eu narcísico foi introduzida, subvertendo a psicologia ordinária e a representação que o ser falante se faz dele mesmo, acreditando ser mestre de seu ser. Ela relembra que a repetição freudiana é um fator de inadaptação do sujeito porque ela o conduz a comportamentos que desobedecem às exigências da vida e ao bem estar do corpo, de onde resulta seu aspecto anti-vital. Tão logo, ela relança a descoberta do inconsciente como a especificidade do campo freudiano a fim de reafirmar a psicanálise como uma prática fora da norma[5], isto é, apartada de um dever ser sempre pautado em um ideal.
Ir ao fato da experiência freudiana[6], como assinala Lacan, estabelece uma diferença entre as ações ortopédicas que psicologizaram a teoria analítica […], suturando essa hiância e fechando o inconsciente em sua mensagem[7] e a práxis psicanalítica, cuja operação repousa na dimensão da falha. Lacan afirma que “… o abra-te sésamo do inconsciente é de ter efeito de fala, de ser estrutura de linguagem, mas exige do analista que ele retorne sobre o seu modo de fechamento. Hiância, batimento, uma alternância de sucção para seguir certas indicações de Freud, eis do que devemos nos dar conta, e é isso que procedemos para fundá-lo em uma topologia”[8].
Para Lacan, a hiância é característica da função de causa do inconsciente, uma causa intrinsecamente ligada a algo que manca, que claudica[9]. Em seu texto inaugural da psicanálise, Freud aponta, através da famosa cena da carne informe da garganta de Irma, algo de inominável, sem significação alguma, e que ele chamará de umbigo do sonho. Para Lacan, esse “centro de desconhecido não é outra coisa senão essa hiância da qual falamos”[10]. Temos, portanto, uma dupla face do inconsciente: de um lado, produtor de sentidos, de outro, revelador de um furo estrutural, lá onde o significante não tem alcance.
Em consequência, o sujeito do inconsciente será caracterizado por aquele que “nem sequer sabe que ele fala”[11], pois a função de causa que o sustenta torna “difícil designá-lo em qualquer lugar como sujeito de um enunciado […] Daí o conceito da pulsão, onde o designamos por uma localização orgânica, oral, anal, etc. que satisfaz essa exigência de estar tão mais longe do falar quanto mais ele fala”[12]. Lacan introduz assim um sujeito apreendido no nível das pulsões e que se distingue do sujeito hegeliano o qual “desde a origem e até o fim sabe o que ele quer”[13]. No lugar do sujeito absoluto de Hegel, ou seja, de um sujeito identificado a si mesmo e cujo saber repousa sobre o absoluto, Lacan institui um sujeito barrado, cujo saber se constitui em torno do enigma da sexualidade. É, portanto, um saber não totalizante, já que nele está incluído o furo da estrutura.
Logo, a subversão do sujeito é o sujeito dividido pela linguagem e cujas operações de causação que o constituem inauguram um corpo recortado em zonas erógenas através do qual a pulsão se satisfaz ao realizar seu circuito. Trata-se, ao mesmo tempo, de um sujeito articulado ao significante e à pulsão. Lacan precisa que “a pulsão, como representante da sexualidade no inconsciente, nunca é senão pulsão parcial. Está aí a carência essencial, isto é, aquela que poderia representar no sujeito o modo em seu ser do que nele é macho ou fêmea”[14]. Dito de outra forma, o trajeto da pulsão em torno de um orifício do corpo visa recuperar a perda original produzida pelo encontro do sujeito com o Outro, revelando a ausência de referência ao sexo na dialética do sujeito. Razão pela qual a bissexualidade biológica não determina ser homem ou ser mulher.
Assim, quando Lacan posiciona o inconsciente como o corte entre o sujeito e o Outro[15], ele situa a sexualidade como limiar do inconsciente, na medida em que ela “se reparte de um lado a outro de nossa borda”[16]. De um lado, temos então o vivente, isto é, o ser sexuado que somente tem acesso ao Outro do sexo oposto através das pulsões parciais. De outro lado, temos o campo da linguagem, onde o sujeito pode encontrar uma ordem ou uma norma para dizer o que ele deve fazer como homem ou mulher[17], ou seja, é apenas no nível do significante, pela via discursiva, que ele tem a chance de se contar de um lado ou de outro. É precisamente porque estamos submetidos à linguagem que a anatomia como destino pode ser subvertida.
A psicanálise, portanto, enquanto uma práxis que não está referida a um critério de normalidade pré-estabelecido, torna tratável, em contrapartida, isso que é da ordem do incurável, isto é, a falha estrutural que funda o próprio inconsciente e inaugura um sujeito que padece da linguagem. Como relembrou A. Pfauwadel, “somos animais doentes da linguagem” e a prática da psicanálise opera em direção ao que constitui o princípio de normatividade de cada um, de tal maneira que o sujeito possa alcançar uma concepção de normatividade subjetiva naquilo que ela comporta de criativa e subversiva[18].