#06 - OUTURBRO 2023
O cômico triste em Rei Lear
Mariana Galletti Ferretti
Participante da Comissão do Boletim Gaio
Assim como o tema das próximas Jornadas, o R.I.S.o, a figura do Bobo da corte tem muitas dimensões. O Bobo ou o fool – termo utilizado por Shakespeare no texto original de Rei Lear e destacado por Lacan como um significante mais preciso que surge no teatro elisabetano[1] – pode provocar o riso tanto por carregar uma deformação ou anormalidade que estigmatiza o corpo e o aproxima do ridículo quanto pode ser aquele que faz denúncias debochadas e perspicazes, sendo escutado de maneira privilegiada. Se, por um lado, ele pode perturbar a imagem do ideal caçoando de si mesmo, por outro, pode ser a via régia de uma dimensão da verdade. Nas palavras de Lacan, “O fool é um inocente, um parvo, mas por sua boca saem verdades, que não apenas são toleradas, mas que encontram sua função”[2]. Objeto dejeto e sujeito suposto saber – lugares conhecidos do analista sob transferência.
Para ocupar estes lugares é preciso existir fora e dentro: estar fora dos padrões e da lógica do poder dominante garante ao fool a possibilidade de se autorizar e ser autorizado a falar para uma audiência que não se sente ameaçada por suas interpretações; tais interpretações só podem ser elaboradas por um olhar atento de quem está, em certa medida, inserido num determinado contexto.
Vejam como em poucas linhas foi possível apontar para diversas possibilidades de articulações. O tema é vasto e é preciso escolher uma via para trabalhar. Neste sentido, me pareceu importante retornar a Shakespeare, já que Lacan, ao se referir ao fool no Seminário 7, fez menção direta ao teatro elisabetano, do qual o bardo era o expoente.
Shakespeare popularizou um tipo de teatro que envolvia de forma relevante a subjetividade dos personagens no enredo das peças. A vivacidade das tramas repousa na representação eloquente das contradições humanas. Por isso, pode ser insuficiente tomar a figura do fool somente pelo viés do humor, mesmo que ele esteja lá, inegavelmente. A riqueza desta figura histórica é uma oportunidade para investigarmos o riso na psicanálise em sua complexidade.
Ler as passagens nas quais aparecem as falas do fool em Rei Lear pode ser perturbador. Por mais que algumas sejam muito engraçadas[3], o deboche e a escolha certeira nas palavras fortes e difíceis de serem escutadas podem ganhar o destaque. A angústia pode surgir para o espectador que localiza algo da ordem da proximidade do objeto a nas colocações.
Há duas passagens nas quais se pode localizar algo desta dimensão e ambas se dão logo na primeira cena em que o fool aparece (Ato I, Cena 3), introduzindo a relevância do personagem. Uma delas é uma pergunta irônica e contundente ao Rei: “o senhor não sabe fazer nada com o nada, tiozinho?”[4]. A outra é uma afirmação de igual alcance: “pelo menos sou um bobo (fool), tu não és coisa nenhuma”[5]. Nota-se que as duas falas apontam para o nada.
O objeto a se destaca dos outros por designar uma falta que não pode ser reduzida ao significante, indicando um vazio, um nada, algo que pode ser entendido como “a falta de apoio dada pela falta”[6] . Dito de outro modo, a angústia é um alerta de que o sujeito está próximo do real e o perigo disto é a falta da falta que pode levar ao aniquilamento do desejo, ao nada, ao inanimado que nos sugere que toda a pulsão é morte.
Talvez tenha sido disto que Lear se deu conta: a proximidade da morte. Não tanto por sensibilidade ou perspicácia, mas por notáveis e inegáveis efeitos da idade avançada. As medidas tomadas para manter sua virilidade foram inúmeras e, como num delírio narcísico, ele se autorizou a cobrar das três filhas demonstrações fidedignas de amor incondicinal. Foi Cordélia, a filha deserdada por se negar a agir de acordo com a arrogância autoritária do pai, que denunciou sua fragilidade ao sustentar que o tipo de amor que ele pretendia reconhecer nas belas palavras das filhas não existia. Ela foi, então, banida da vida e do coração do pai, que encontrou o que supunha procurar nas palavras das outras duas filhas. Assim, o reino seria dividido somente entre as herdeiras que deram as respostas adequadas aos ouvidos narcísicos do Rei.
Entretanto, Lear se recusava a abrir mão da majestade justamente por acreditar piamente na consistência de sua soberania. Dito de outro modo, acreditava na consistência do significante fálico. Foi essa crença que o consolidou na posição de déspota, mesmo tendo abdicado do grandioso exército e de todo pedaço de terra que antes constituía seu reino.
Goneril e Regana, as filhas reconhecidas pelo pai, não mediram esforços para tirá-lo de cena. As estratégias foram muitas, inclusive uma guerra foi travada: de uma lado, as duas que não mais suportavam a figura do pai e, de outro, Cordélia, que – ironicamente – foi aquela que mandou um exército para defender Lear.
Afinal, do que se pode rir nesta tragédia?
Lacan, no Seminário RSI, nos diz que “O falo é outra coisa, é um cômico como todos os cômicos, é um cômico triste. Quando vocês lêem Lisístrata, podem pegá-lo pelos dois lados. Rir ou achar amargo”[7].
A ambiguidade está posta quando se trata do falo e pode ser isto que o fool acaba por encarnar.