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O cartel e a psicologia das redes sociais(1)
Rodrigo Lyra Carvalho (EBP/AMP)
O título dessa Jornada traz três termos objetos usuais de nossa atenção: massas, grupos e cartéis. Rede social é o que perturba a lista, o unheimlich, o estranho familiar.
A ideia de rede ocupou lugar central no ensino de Lacan. Em 1968 ele afirmou que havia entrado “na psicanálise com uma vassourinha que se chamava estádio do espelho” (10/1/1968). A função era varrer as tendências que essencializavam a subjetividade e transmitir o eu como uma montagem múltipla, uma conexão de distintos elementos. O ser falante só existe em rede que poderíamos chamar de social, pois não é apenas biológica.
O termo rede social nos convoca por um motivo suplementar, menos familiar e mais estranho: as últimas décadas foram marcadas, com a disseminação da internet, por um exponencial desenvolvimento de hardwares e softwares que impactaram o modo como as redes se constituem, como, nelas, os seres falantes se constituem e se organizam.
Dentre os aspectos das novas redes, destaco a disputa pela atenção dos usuários, o que se chama no Vale do Silício engajamento. Trata-se de aumentar o tempo que passamos on line e a quantidade de dados fornecidos. Nessa disputa, são empregados todos os recursos disponíveis para a produção da adição.
Sentimos participar de uma rede aberta, não editada, composta pela voz daqueles que escolhemos seguir. Contudo, a mediação está em cada gesto de comunicação e passa a ser comercializada. Entre nós e cada amigo, notícia, propaganda, postagem de um movimento social ou político, há uma mediação invisível.
Um fator vem sendo documentado sobre o esforço das redes sociais de aumentar o engajamento. Na versão light, isso seria obtido na medida em que os algoritmos oferecem mais material que dê prazer. Na prática, o conteúdo alarmista e a radicalização são estratégias mais eficazes.
É um cenário para o qual contribuem tanto um longo processo cultural – o enfraquecimento da função paterna –, quanto o advento das tecnologias. O laço social e a política tendem à horizontalidade e à busca de acomodação entre grupos identitários. Não cabe a nós, psicanalistas, abraçar a nostalgia ou festejar as boas novas, mas refletir sobre as condições mínimas para que as dificuldades estruturais sejam encaradas com o saber fazer mais sensível possível.
É nesse ponto que o cartel pode nos orientar. Ele tem em sua base a ideia freudiana que se revela na “Psicologia das massas”, mas está em toda a obra: não existe diferença essencial entre a psicologia do eu e a psicologia do grupo.
Lacan radicaliza essa noção ao mostrar que não se trata apenas de aproximar a psicologia do eu à psicologia do grupo, mas de perceber que nem um nem outro são processos autônomos, não existem “em si”. Um ser falante não se define por sua substância, mas por seu lugar em uma complexa rede de relações.
O cartel é a encarnação institucional e epistêmica dessa perspectiva. Traduz a convicção de que o sujeito e seu saber não são entidades fechadas, separadas de sua rede. O saber que interessa, capaz de colonizar algo do real da experiência, não é propriedade de um indivíduo, nem tem a feição abstrata de uma informação incorpórea.
Habituamo-nos a pensar o cartel como poderosa ferramenta contra o discurso do mestre. Mas se o discurso da psicanálise foi construído por Lacan como o avesso do discurso do mestre, é preciso perceber que o discurso dominante, que serve como Outro da psicanálise, não se organiza de forma oposta à sua, como Miller sustentou em “Uma fantasia”(2).
É necessário pensar nas mutações contemporâneas da propagação do saber e buscar no ensino de Lacan as pistas para enxergar formas distintas de manejá-lo, para que seja possível subverter não o discurso do mestre, mas a degradação e a mercantilização da experiência de fazer rede. Embora em aparência o cartel seja homólogo ao tipo de reunião promovida de forma corriqueira nos laços sociais atuais – instável, temático, provisório, sem hierarquia -, ele preserva a potência subversiva ao apontar um modo de fazer rede que serve como condutor das pequenas construções singulares.
Os frutos de um cartel são feitos em nome próprio, pois o saber não é anônimo, mas nem por isso serão a revelação do que reside na mente isolada do psicanalista. O produto de um cartel é a narrativa de uma experiência de interação das conexões feitas ao longo dos encontros. Penso que essa dimensão deveria fazer parte dos trabalhos produzidos: que não se falasse apenas dos temas estudados, mas da própria experiência de tê-los estudado no dispositivo.
O cartel é hoje nossa grande referência, campo de estudos sobre modos de experimentar a rede e, ainda assim, produzir uma singularidade que não possa ser rapidamente absorvida, vendida e manipulada pela lógica dos algoritmos. Não é apenas um dispositivo que favorece o estudo e as atividades institucionais, é a pesquisa, em ato, de um novo modo de tecer o laço. O cartel é a nossa rede social.
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1 N.E.: Este texto é um resumo da Conferência proferida na Jornada de Cartéis da EBP-Seção São Paulo, em 29.09.2018.
2 MILLER, J.-A. “Uma fantasia”. Disponível em: http://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html