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O artista e sua travessia subversiva

 

por Janaina de Paula Costa Veríssimo (Associada ao CLIN-a)
Imagem: Instagram @anatolknotek
Imagem: Instagram @anatolknotek

Um filho artista e a travessia de um luto. Uma travessia poética, lá, onde a herança materna se fez viva pela presença dos escritos deixados. Assim, poderíamos ousadamente sintetizar a experiência concebida por Mateus Nachtergaele, em 2015, no monólogo, então intitulado, “O processo do conscerto do desejo”.

Ao falar sobre a concepção da peça, o ator e diretor esclarece o neologismo em jogo na composição do título original. Para além da homofonia, uma manobra sutil com a letra permite romper com o sentido unívoco: “poucas palavras se confundem tanto em nossa língua quanto ‘concerto’ e ‘conserto’. Aqui, elas se mesclam vertiginosamente […]. Quero consertar meu desejo com poesia, num concerto”[i] – eis a interpretação do artista, a partir do próprio equívoco bem sucedido que se forja.

Sua mãe, a poeta Maria Cecília Nachtergaele, faleceu quando Mateus era ainda um bebê de três meses de vida. Recebeu do pai, já na adolescência, o caderno de poemas materno com o qual não soube o que fazer durante alguns anos. Ainda seria preciso tempo para dar algum tratamento àquele “vespeiro emocional”[ii], senti-lo menos aterrador e, quem sabe, passível de um novo destino: o teatro.

Em seu “Diário de Luto”, Roland Barthes escreve – entre outubro de 1977 e junho de 1979 – notações quase diárias, após a morte de sua mãe. Tratam-se de “textos curtíssimos e secos, em que nada vibra para além da referência ao tempo: mais existem do que fazem sentido”.[iii] A escrita cumpre uma função, longe de suprimir, transforma a dimensão estática da dor. Barthes escreve: “Transformo ´Trabalho´ no sentido psicanalítico (Trabalho do Luto, do Sonho) em ´Trabalho´ real – de escrita”.[iv] Para cada um, a via de um trabalho singular.

Em seu processo, Nachtergaele apanha com cuidado os fragmentos poéticos da mãe e garante-lhes um lugar mais contundente do que trágico, ao construir uma delicada tecitura/tessitura que confirma, sem dúvida, seu testemunho: “a peça conseguiu não ser neurótica, de autoajuda ou autopiedosa. Um filho utiliza seu instrumental de artista…”[v] para transcender uma questão muito íntima e devolvê-la ao público – “minha queixa como filho e o suicídio da mamãe, para fazer um espetáculo sobre o embelezar das coisas tristes”[vi], ele dirá.

Com seu traço singular, a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, ao abordar em texto a questão do luto, também produz um oportuno neologismo: “não houve um processo de retrocesso. Houve antes ondulação por nostalgria”.[vii] O trabalho do luto segue, mas não sem seus rastros e algo que restará sempre como nostálgico e inassimilável.

Como Freud tão bem nos adverte em sua “Carta a Biswanger de 14 de março de 1920”, após a morte da filha Sophie, no período da Gripe Espanhola: “tenho muito que fazer, mas nada estanca o empobrecimento”.[viii]

Em julho deste ano, já com a pandemia do novo corona vírus em curso, Mateus Nachtergaele renomeou seu espetáculo de “Desconcerto” e foi ao ar, ao vivo, pelo You Tube do Sesc São Paulo, em uma versão mais intimista, mas não menos pungente, emocionante e desconcertante da peça.[ix]

Em anúncio pré apresentação, ele afirmou: “vou estar sozinho [ao se referir à ausência dos músicos que o acompanham nos palcos] fazendo teatro ou, como eu disse, aquilo que se parece com teatro”.[x] Um saber-fazer que se (re)inventa diante da contingência. O artista, assim como o psicanalista, é aquele que não recua diante do mal-estar de sua época.

Em um momento tão delicado como o atual, em que o luto atravessa os dias, e o somatório das mortes beira números, até então, inimagináveis, avançar na companhia subversiva e sensível dos artistas pode ser mais do que bem-vindo, é vital.

“Trata-se da arte promovendo subversões em corpos confinados”[xi], como bem nos lembrou Daniela de Camargo Barros Affonso, em sua provocação intitulada “Subversão criativa”. O artista e seu ato ético, estético e, por que não, político segue nos ensinando.

 


i Entrevista disponível em: <https://aplausobrasil.com.br/gente-matheus-nachtergaele-estreia-processo-de-conscerto-do-desejo-em-sp/>. Acesso em: 06 set. 2020.
[ii] Idem.
ii FONTANARI, R. Roland Barthes. A dor do luto. Disponível em: <file:///C:/Users/User/Downloads/46812-Texto%20do%20artigo-56278-1-10-20121115.pdf>. Acesso em: 06 set. 2020.
[iv] BARTHES, R. Diário de luto. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 123.
[v] Entrevista disponível em: <https://www.hojeemdia.com.br/almanaque/entrevista-matheus-nachtergaele-fala-de-desconscerto-planos-futuros-e-a-arte-no-cen%C3%A1rio-atual-1.790500>. Acesso em: 06 set. 2020.
[vi] Idem.
[vii] LLANSOL, M. G. Os cantores de leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 13.
[viii] FREUD, S. Carta a Biswanger de 14 de março de 1920. Disponível em: < http://www.ipla.com.br/conteudos/artigos/carta-a-binswanger-de-14-de-marco-de-1920/>. Acesso em: 06 de set. 2020.
[ix] Ao leitor interessado, cabe conferir: < https://www.youtube.com/watch?v=To0j0Ss_GkE>. Acesso em: 06 set. 2020.
[x] Entrevista disponível em: <https://aplausobrasil.com.br/gente-matheus-nachtergaele-estreia-processo-de-conscerto-do-desejo-em-sp/>. Acesso em: 06 set. 2020.
[xi] AFFONSO, D. C. B. Subversão criativa. Disponível em: < https://ebp.org.br/sp/subversao-criativa/>. Acesso em: 06 de set. 2020.
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