ARGUMENTO – XI JORNADAS DA SEÇÃO SÃO PAULO
Ⱥ VERDADE E O GOZO QUE NÃO MENTE[1]
Comissão de Argumento: Angelina Harari (coord.), Camila Colás, Eduardo Vallejos, Fabrício Donizete da Costa, Francisco Jr. Lemes, Francisco Durante e Luisa Fromer.
Amor à verdade em Freud
Comecemos com Freud. Podemos dizer que ele se enveredou pelas tramas do amor à verdade, deparando-se nessa travessia com a descoberta da psicanálise. Amor à verdade como condição sine qua non para a cura analítica[2]. Contudo, tal relação entre amor e verdade não se deu sem seus impasses ou mesmo, um sorriso doce de Lacan[3].
Tomemos um desses possíveis impasses freudianos, extraído na parte VII de seu texto intitulado Análise terminável e interminável. Freud escreve: “Por fim, não se deve esquecer que a relação analítica se baseia no amor à verdade, isto é, no reconhecimento da realidade, e exclui todo engano e aparência”[4].
Verdade, engano, aparência. Pontos reparados por Freud ainda presentes nas análises que conduzimos hoje? Vemos nas análises de orientação lacaniana mais a via do horror do que a do amor à verdade, como nos indica Miller[5]. Deslocamentos da verdade ao longo do percurso da psicanálise e das análises, fato que vemos desde Freud, em que a Verdade ainda totalizada, trará outras repercussões clínicas com o ensino de Lacan, com o advento do neologismo varité, por exemplo, que acopla a palavra vérité (verdade) à palavra variété (variedade) para designar a verdade variável[6].
Assim, da dita Verdade totalizante, movida pelo desejo de saber, que aos poucos deixará de obscurecer o desejo do analista, descoberta freudo-lacaniana, nesse diálogo tenso entre leitores, ambos, tomando a verdade como fio condutor, em seus estilos singulares. A que serve aos analistas de orientação lacaniana tomarem a verdade enquanto um fio de Ariadne? Entramos, assim, no terreno ficcional dos percursos singulares das análises que conduzimos?
A verdade como estrutura de ficção
Assim como fez Lacan em relação à noção da verdade em Freud, avancemos. “A verdade tem uma estrutura, se podemos dizer, de ficção”[7]. É a partir desta afirmação que Miller nos conduz, em sua Sétima Lição, nas Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan, à compreensão da verdade enquanto verdade variável, sob o neologismo varidade [varité] e de ficção como “uma fabricação, que é da ordem da poiesis, da produção, do fazer. Uma ficção é uma produção que traz a marca do semblante”[8].
A experiência analítica traz consigo a verdade enquanto substância e a ficção como um saber que repousa sobre um dizer. Aqui é importante marcar a oposição da verdade em relação ao real, “O real engana a verdade. Em relação ao real faz sentido dizer que a verdade variável não é mais que um semblante. O correlato do real não é a verdade, e sim a certeza, que é, se quiserem, uma verdade que não muda. Se chega a certeza do real somente pelo significante como saber e não como verdade”[9]. É neste sentido que Lacan avança em seu ensino orientando-o ao simbólico, ao formalizar que a verdade do inconsciente tem estrutura de linguagem, mas que, ao final do ensino, veremos que o inconsciente tomado nesses termos “não passa de uma elucubração de saber sobre a lalíngua”[10] e que, portanto, “a ordem simbólica é da ordem da ficção”[11].
Da prosopopéia da verdade à verdade que toca o real
Assim disse Lacan: “Eu, a verdade, falo”[12]. Assim não disse só, introduz Miller. Conquanto precisou repeti-lo: “Eu, a verdade, falo”. Talvez por isso “foram tão irrisórios de imediato os esforços para saber se Lacan dizia verdadeiramente o que Freud havia dito: “Freud disse? Mostra-me o parágrafo!”[13]. Assim se ambrosia a inibição. Então digamos que o bruxo de Paris não foi um místico exemplar na igreja. Não só levou seus cães, atiçou-os a latir[14]! Tantos desarranjos! Foi exato na geometria dos puros espíritos[15]. Mas um herege, rigorosamente convertido, em Cérbero não estaria erigido? “Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo” (Se não posso vencer os céus, moverei os Infernos)[16] .
Lacan vociferava aquela verdade que fala nas entrelinhas, no lapso, no ato falho”[17], aquela verdade de que existe o verdadeiro. “Ele não a cuspiu, mas a repetiu autenticamente, o que pressupõe uma aliança sempre equívoca com a criação”[18]. E essa repetição operada implica que se desloquem as entranhas. O resultado, dirá Miller, “é que Lacan mesmo se tornou um real”[19]. Quer dizer, que se atravessou contra o arrebatamento homeostático da psicanálise.
Como o guardião do Hades condiria não produzindo repetições tão desagradáveis, de duplo sentido? Pois exatamente ali, no Inferno dos Gulosos[20], assentou que não está de saída o que revira nossas tripas, que “não há ninguém que não seja pessoalmente afetado pela verdade”[21]. Tanto que a Quimera se assoma. Ainda mais onde “só habitam os seres da maior pureza”[22], os que compreendem, porque ali, a verdade permanece em trabalho de fraldas, não se quer saber do parto. Donde que, se afeitos por palavras subversivas, vigiemos “para que elas não se grudem demais no caminho da verdade”[23]. Hadisterias nos mordam!
Portanto, uma verdade, se bem dita, não vangloria cãoceito, aceita não. Um conceito jaz. Uma verdade jouisse. Ela re-esiste, escandalosa mente. Sua prosopopeia sentinela o horror, na epopeia que enoda a nós: “não há metalinguagem”, não há “o verdadeiro sobre o verdadeiro”[24]. “Eu, a verdade, falo” enuncia esse vazio, que, em Televisão, é retomado para enunciar outra coisa: “dizê-la toda não se consegue […] porque ela toca o real”[25] . O que nos permite, nota Miller, “medir o deslocamento de Lacan, pois introduz o termo real nesse ‘Eu, a verdade, falo’, na falta que isso designa”[26].
Então, “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará?”[27] O golpe é de lei, deleite tóxico, tentador! Nos ev-angelhos a verdade não varia: este pretende liber-torá. Já a verdade que fala não diz “Eu sou”, a verdade que fala diz “Eu falo”.
Mirem que os ab-inferos são poemas, cujas palavras são intoleráveis. In-feroz que experimentam avarias da verdade, que tão louca-mente não se locupleta. O que nela não crê, mas que nela vê crê-ser, sabe o que, com o que dela se satisfaz? Que actifício[28] mantém a quimera? Em termos de ficção isso se diz! Em posição de semblante isso se escuta! Em prosopopéia isso se ladra! Isso faz até comédia, e sua loucura se elogia, mas seu horror não abaixa a guarda. “Eu, a verdade, falo”: empresteis-voz à verdade e a verdade vos excomungará!
O parentesco da verdade com o gozo
Em Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan, J.-A. Miller faz uma báscula sobre a relação do sujeito com a verdade em uma análise que começa e em uma que dura. Na análise que começa a verdade se manifesta por revelações daquilo que não se sabia sobre a pulsão, sustentadas na oposição freudiana clássica entre consciente/inconsciente. O início de uma análise é marcado portanto, sob o signo da revelação, como “fogos de artifício”[29]. Na análise que dura, contudo, tais revelações são cada vez mais raras e a verdade como revelação é substituída pela repetição sintomática.
Com a introdução da teoria dos discursos no seminário 17, O avesso da psicanálise, Lacan nos indica que ao mesmo tempo em que o sujeito barrado surge como um “efeito de verdade”[30] do discurso do mestre, de tal operação significante permanece um resto que resiste ao saber, trata-se do objeto a com seu caráter de mais-de-gozar. Neste sentido, em uma análise que dura seu eixo se desloca da oposição consciente/inconsciente para a oposição entre inconsciente e gozo, que verifica o sujeito como efeito de verdade, mas também o parentesco da verdade com o gozo que sobra desta operação de causação do sujeito. Trata-se do que Lacan desenvolveu no capítulo IV deste mesmo seminário, da verdade como irmã do gozo. Nomear a verdade como irmã do gozo, seria o mesmo que dizer que ela é “inseparável dos efeitos de linguagem […]”[31], uma vez que ela se liga ao gozo enquanto barrado ocupando o lugar daquilo que é mortificado pelo significante. Aqui, o acesso ao gozo se faz pela via da entropia, do desperdício produzido pela operação significante.
O Outro (que não existe) é o da verdade
Neste momento do ensino de Lacan, do Seminário 17: o avesso da psicanálise, há uma equivalência entre o sujeito e o gozo. O gozo é “[…] esse ser prévio ao funcionamento do sistema significante. Esse ser prévio é um ser de gozo, quer dizer, um corpo afetado de gozo”[32]. Em O osso de uma análise, J.-A Miller nos indica que em seu primeiro ensino, Lacan tomou o corpo como Freud, “introduzido como pulsão”[33]. Quando o corpo pulsional passa a articular-se à cadeia significante há, propriamente, uma virada lacaniana, em que o significante traduz a relação do sujeito com a pulsão. Trata-se, neste momento, do que se chamou na Orientação Lacaniana “a significantização do gozo”[34], ou seja, do corpo como objeto barrado, como falo negativado (- phi) em seu gozo pelas operações de deslocamento e substituição significante. Este corpo mortificado se articula à verdade como uma “mentira verídica”[35] sobre o lugar enigmático do desejo no Outro, uma verdade que, ao ser decifrada pela via do saber (S2), não se esgota em sua significação e volta a exigir interpretação e a proliferar sentido imaginário sobre o gozo. Tal expressão, “mentira verídica”, foi forjada por Lacan em seu Seminário 11 para designar, no esquema óptico, o eu ideal constituído a partir e no olhar do Outro.
Se em seu primeiro ensino a verdade do gozo se assenta em uma lógica que provém do Outro simbólico que “se desenvolve essencialmente na fantasia”[36] como perda, limitação e negatividade, no caminho para seu último ensino há uma disjunção entre o gozo e o Outro. Trata-se de uma mudança que se impõe como uma necessidade de formalização na medida em que, ao perder sua função simbólico-imaginária de “demandar a castração do sujeito”[37], esse Outro da fantasia revela sua inexistência, o que permitiu a J.-A. Miller dizer que “o Outro que não existe é o da verdade”[38], é a passagem da significantização do gozo para o gozo impossível de negativar pelo simbólico.
Aqui o falo passa a ser lido como um significante paradoxal em relação ao objeto a, causa de desejo, que esvazia o corpo de gozo por um lado, mas a partir do vazio próprio do objeto, produz um mais-de-gozar ou, em outras palavras, produz um corpo que se goza. “O que significa dizer que o gozo tem um significante que não se negativa e, em termos precisos, que se toma emprestado o Phi, do falo, quando se inventa escrever esse significante? […] designa um gozo mais além da castração, ou também aquém dela”[39]. Seguindo tal indagação de Miller prosseguimos: qual o lugar do gozo fálico como impossível de negativar na experiência analítica? Qual seria sua relação com Ⱥ verdade? Haveria correlação entre o gozo fálico não negativizável e o gozo que não mente, qual?
O gozo que não mente é o gozo como tal?
Na aula de 10 de maio de 1977 Rumo ao Significante Novo, Lacan se pergunta: o real mente? Na análise pode-se dizer certamente que o verdadeiro mente (vrai ment). A análise é um longo percurso (chemine ment)[40]. O princípio do verdadeiro é a negação, Freud da Verneinung promoveu que a negação supõe uma Bejahung, a partir de algo que se enuncia como positivo se escreve a negação[41]. Segundo Lacan, é aqui que Freud nos promoveu o essencial!
No cogito lacaniano “sou, logo goza-se” o que temos é o gozo impossível de ser negativizado, aquilo que não pode ser eliminado na experiência analítica. O gozo opaco só é possível se experimentar ao lado do gozo feminino, esse que é concebido “como princípio do regime do gozo como tal (…) reduzido ao acontecimento de corpo”[42].
Quando chega-se ao gozo sem nome, impossível de negativação, não se trata mais de retificar o sujeito, como dizia Lacan no seu primeiro ensino em relação ao amor a verdade, mas sim de uma “retificação do gozo”[43]. Uma retificação do gozo, pois do gozo não há verdade a ser alcançada, resta apenas a reconciliação. Algo mais do positivo, do sim, em vez do não, pois no cogito lacaniano “se goza”!
Como nos diz Miller, trata-se de retificar o gozo, mas para isso é preciso tomar a via do significante Um, esse que insiste e que é correlativo a existência e não ao ser, “ao significante Um, significante rígido, se inscreve o gozo opaco ao sentido, o qual é uma referência da ordem do real”[44]. Se há significante “novo” estamos ainda na linguagem, com a diferença que temos o corpo vivo. Dessa forma, como ter notícias do gozo que não mente? É pelo estilo do analista, esse que não pode ser dito, mas pode ser experienciado no um a um?
Se ao analista cabe acreditar na verdade que o sujeito traz, ao mesmo tempo é o analista que o incita a busca pela verdade. Assim, como chegar ao gozo que não mente, se justamente é o gozo, isso que o sujeito não quer saber? Qual a verdade que está em jogo na experiência analítica já que a verdade é variável na medida que a busca do sentido não tem fim e o seu fim só pode ser a mentira?
Verdade mentirosa
A palavra verdade está presente no ensino de Lacan do começo até o final, embora haja uma fratura entre o que poderíamos chamar de seus dois regimes[45]. A desvalorização da questão da verdade é consequência de mudanças no estatuto do inconsciente, não mais considerado como lugar da verdade, mas como um saber que não pensa, um saber inscrito no real. No percurso de um regime a outro, Lacan articula a verdade ao paradoxo do mentiroso no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, “com efeito, não haveria a verdade da mentira? – essa verdade que torna perfeitamente possível, contrariamente ao pretenso paradoxo, que eu afirme – Minto”[46]. Tal percurso nos leva ao sintagma lacaniano verdade mentirosa, tratando-se neste regime de uma aliança da verdade com a mentira.
Lacan nunca abandonou essa referência da verdade, seja a verdade no singular, sejam as verdades variáveis para as quais criou o neologismo varidade (varité); varidade é como Jacques-Alain Miller entende a proposição segundo a qual “a verdade tem estrutura de ficção”. E, para tanto, o passe não é a revelação de uma verdade, mas a revelação que a verdade é mentirosa. Uma verdade autêntica, mas que é “…igualmente mentirosa aos olhos do gozo de impossível negativação”[47]. Lacan define assim, no finalíssimo ensino, o passe como a miragem da verdade. No regime da verdade mentirosa, como se articulam verdade e gozo que não mente?
O problema da relação entre a verdade e o gozo deve ser reconsiderada sob o ângulo do gozo como de impossível negativação, ao buscar sair do “teatro do sacrifício fálico”[48], onde haveria o Outro a demandar sua castração para dela gozar. Em suas elaborações, Lacan foi obrigado a desdobrar seu símbolo do falo: o falo marcado com um menos, como símbolo da castração e como imaginário. Mais adiante ele é levado a inscrever como um Phi, chamando-o de “falo simbólico impossível de negativizar”[49], que resiste à castração e coloca em aposição “significante do gozo”[50].
O “significante do gozo”, única vez que essa expressão aparece nos Escritos, na leitura de Jacques-Alain Miller, é retomado por Éric Laurent nas conferências apresentadas no Rio de Janeiro (EBCF – 2018) e publicadas em Opção Lacaniana 84, que destaca homologias e as diferenças entre o texto dos Escritos (1954) e aquele dos Outros Escritos (1974). Segundo Laurent, o gozo figura no índice ponderado dos Escritos “[…] como estando ligado à castração, marcado com menos, negativizável”[51] e é a partir do Seminário 20 que o gozo não é mais negativável, trata-se de uma perspectiva cujo ponto de partida “não é o ‘Não há relação sexual’. Mas, ao contrário, um há. Há gozo” [52].
Para concluir, na contemporaneidade vemos surgir o S1 sozinho descolado do contexto que o S2 lhe oferece, fato que já havia sido considerado por Lacan como risco e perigo provável, mas que vemos concretamente hoje na teoria do cancelamento, que em nome da verdade se desconstrói o S2 fazendo-a consistir como verdade totalizante. Laurent Dupont evoca a teoria do cancelamento em seu texto Eléction présidentielle, le désir et la nécessité [53] ao resgatar uma previsão de Lacan feita no Seminário, livro 19: … ou pior, dando conta do efeito catastrófico da recusa do S2, justamente neste Seminário que trata do advento do Um. Lacan aí nos diz “…saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências, e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”[54].
Preparação e revisão de texto: Eduardo Vallejos.