BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
INTERVENÇÃO SOBRE O VETOR: “VERDADE MENTIROSA”
Gustavo Menezes
Membro da EBP e da AMP
Gostaria de destacar dois pontos a partir do vetor que me foi atribuído: 1) o passe é a revelação que a verdade é mentirosa; 2) na contemporaneidade, em nome da verdade, o S1 descolado do S2 consiste em uma verdade totalizante. Iniciarei pelo segundo.
Em nossa época, a evidente desvalorização da verdade a qualifica de pós-verdade. Em pesquisa recente divulgada pela agência Aos Fatos[1], somente no primeiro mês de campanha da atual eleição brasileira, links compartilhados com informações falsas e teorias conspiratórias tiveram um alcance de mais de 30 milhões de usuários do Telegram e WhatsApp, tornando-se uma fonte rentável de desinformação.
No discurso das fake News, as opiniões se proliferam e os fatos se tornam alternativos. Como afirma Dupont, estamos diante do “relativismo absoluto que sustenta um outro absoluto: a crença n’A verdade”[2] que leva ao racismo e à segregação. Na mesma linha, Laurent afirma que “a política do ódio permite ir além da política da razão compartilhada e do respeito pelas verdades estabelecidas. O real vem ali em oposição à verdade e a supera. O ódio permite uma dessuposição geral do saber”[3]. No fake há uma “vontade de enganar” e que “rejeita o real”[4]. Não há verdade que o faça parar, como se muitos soubessem hoje em dia que o verdadeiro mente.
A ordem simbólica se caracteriza por ser uma articulação de semblantes, o tempo todo desconstruídos e reconhecidos como tais. Mas isso é muito distante de uma orientação sobre o real. Por outro lado, a psicanálise restitui que “nem tudo é semblante, há um real”[5]. Nada mais oposto ao fake do que a verdade mentirosa instaurada por uma psicanálise, aquela que mente frente a um real do qual tenta cercar.
Ao longo da análise, a afinidade entre a verdade e a mentira se verifica constantemente. O inconsciente transferencial que se constrói “é inteiramente redutível a um saber. É o mínimo que supõe o fato de ele poder ser interpretado”[6], o que se dá no âmbito da histoeria[7]. No espaço de um lapso, quando a conexão transferencial não opera, se está no inconsciente real. Mas, diz Lacan, “basta prestar atenção para que se saia. Não há amizade que esse inconsciente suporte. Restaria o fato de eu dizer uma verdade. Não é o caso: eu falho. Não há verdade que, ao passar pela atenção, não minta”[8]. A atenção que tira do inconsciente real, eis a primeira mentira!
A cada lapso, nada mais do que um efeito de verdade é produzido, uma varidade. No enxame de S1, a estrutura do saber está afetada por uma falha radical, é um saber apenas suposto, mas nunca atingido. Isso significa que não há uma relação direta com a verdade, ela é mediatizada pelo saber. “O analisante diz o que ele acredita ser verdade. O que o analista sabe é que ele fala ao lado da verdade, porque a verdade, ele ignora”[9]. Assim Lacan interroga a verdade mentirosa da associação livre. Se o inconsciente real é exterior à máquina significante, quando há amizade, passa-se do Um-sozinho ao laço com o Outro.
É nessa via que Lacan propõe operar não mais a partir do verdadeiro, mas da perspectiva do real e do impossível de dizer. Há sempre um obstáculo do fora de sentido e onde o saber está excluído. Se A verdade é barrada, “o lugar do Outro deve ser buscado no corpo e não na linguagem”[10] como superfície de inscrição. À suposição de saber, acrescenta-se o “corpo suposto gozar”[11]. O inconsciente real, análogo ao traumatismo, não é nem uma verdade nem uma mentira, “é o lugar do gozo opaco ao sentido que, por meio da ficção, procuramos tornar tagarela”[12]. É uma nova aliança entre linguagem e gozo. Trata-se de pensar o inconsciente a partir do gozo, e não o contrário.
O sinthoma de um falasser “é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo”[13]. Por um lado, o falasser tem que se haver com o gozo do corpo, e por outro, com o gozo fálico, que “condensa e isola um gozo à parte que se reparte entre os objetos a”[14]. O sinthoma está do lado do que não se deixa negativizar, do gozo positivo e que aponta para o mais-além da castração. É esse gozo que cada vez mais Lacan considera como essencial, e a partir do qual Miller propõe “reconsiderar o problema da relação entre a verdade e o gozo”[15]. Se no primeiro ensino, essa relação se dá essencialmente na fantasia e na recusa do gozo, Lacan vai na direção de que este pode ser atingido. Quando pensamos na oposição verdade/mentira, estamos no nível do recalque como operação dominada pelo simbólico. Por outro lado, falar de verdade mentirosa “é recusar o primado do efeito de verdade sobre o real”[16] que privilegiava a via heroica do desejo e conduzir a experiência em direção ao real, ao encontro do gozo que não mente. Quando se introduz uma negatividade, “há uma interferência da verdade mentirosa”[17].
Dizer que todo mundo é louco, é dizer que “a verdade é mentirosa para todo mundo”[18]. A verdade mentirosa é uma elucubração de saber sobre lalíngua do corpo falante e, portanto, “sobre o falasser”[19]. A verdade pode mentir para se manter o mais próximo do real, mas também para negá-lo, torná-lo fake. Segundo Miller, “entre o verdadeiro e o real, há o impossível de dizer, que faz, ao mesmo tempo, limite, mas também conexão, algum tipo de encontro”[20]. A verdade mentirosa indexada a um impossível de dizer é, de um lado, furo entre verdade e real, e de outro, suplência a este furo[21].
Os testemunhos de passe podem nos ensinar sobre o “momento em que a divisão subjetiva se articula a um ponto de gozo correlato ao acontecimento de corpo”[22]. São exemplos que nos servem para verificar como a verdade mentirosa liga-se sobre a vertente sonora, de letra, para fazer ressoar o real ali incluído. Uma vez que não há como antecipar o efeito de gozo, isso se verifica a posteriori. Equívoco, mal-entendido, silêncio, tornam-se chaves para a interpretação.
O passe é a “verificação da historisterização da análise”[23], do romance que se ordenou pelo desejo do Outro. Deter-se na via da travessia da fantasia, é reconhecer seu ser em um objeto, o qual não passa de semblante. No passe do falasser, só se pode dar testemunho de uma verdade mentirosa. É um final contingente que não encontra “outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise”[24]. Por mais grandiosa que possa parecer a elucubração de saber, o final é concebido como experimentar e dizer de uma satisfação. “Trata-se de um falasser que não mais seria atormentado pela verdade”[25], pois a história que dali resulta não pode mais do que “fazer verdadeiro”[26]. Um equívoco [Une-bévue], uma “fenda entre o verdadeiro e o real”[27], ao qual se acrescenta um “golpe de sentido”[28] para que o inconsciente possa ser deduzido.
Como afirma Miller, se a debilidade está para todos, não há como se adequar ao real, a única via que abre mais além é “montar um discurso no qual os semblantes obstringem um real, um real no qual se crê sem a ele aderir, um real que não tem sentido”[29]. Segundo Laurent: “Mais além da identificação e de seus significantes mestres diferenciados, encontra-se um ‘fazer-se tolo’ de um real. O delírio, no sentido de ‘todo mundo delira’, é a operação que permite reduzir o uso dos semblantes a ‘savoir faire com’ um real que é ressonância da experiencia de gozo, não negativizável. A debilidade do sujeito é crer na possibilidade de subtrair-se disso, de desmenti-la ou de negá-la”[30]. O inconsciente transferencial é a verdade mentirosa e a “miragem da verdade”[31] é o inconsciente real. A partir daí que se pode abrir a porta para o final de análise e “fraturar aquilo a que a falta de relação sexual apela, (…) [a] reserva mental”[32], ou pior, o fake absoluto.