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Estão Fazendo Arte – Do que ri “Mona Lisa”?

Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q., (1919)

Do que ri “Mona Lisa”?

Flavia Corpas
Associada ao Clin-a
Coordenadora da Comissão de Arte e Cultura

Não pude deixar de rir, acho que de espanto, quando, usando a expressão “sorriso de Mona Lisa” no Google, fui bombardeada por centenas de conteúdos sobre o filme homônimo estrelado, em 2003, por Julia Roberts. O sorriso de “Mona Lisa” realmente desgarrou-se de Leonardo da Vinci e de Lisa Gherardini[1]?

Depois sorri novamente, agora lembrando do historiador da arte inglês Kenneth Clark, nome relevante na literatura especializada sobre Da Vinci, quando diz que “sua arte, e a personalidade que ela revela, é de interesse universal e, como toda grande arte, deveria ser reinterpretada por cada geração”[2]. São muitas as releituras da Mona Lisa: de Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q., (1919) – às atuais figurinhas de WhatsApp, passando por Roman Cieslewicz – Mona Tsé-Tung (1976), Nelson Leirner – série Cem Monas (2012), Banksy – Sem título, anos 2000 – e tantos outros. E aqui podemos seguir também o poeta Paul Valéry em sua reflexão sobre Leonardo quando afirma que “o objeto do artista não é tanto a obra, mas o que ela fará dizer, e que nunca depende simplesmente do que ela é”[3].

Fato é que tive que digitar “sorriso de Mona Lisa Leonardo da Vinci” para encontrar diferentes leituras, sobretudo do campo da arte, e distintas daquela feita por Freud a respeito do icônico sorriso. Buscava abordagens mais recentes pois, devido a um antigo interesse pelo texto “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”[4], sabia que a todo momento novas leituras sobre as obras de Leonardo da Vinci, e sobre o próprio, eram produzidas.

A pesquisa revelou a pluralidade de interpretações de tal sorriso. Trata-se de um enigma ou mistério. Ou, não há nada de enigmático ou misterioso. Os opostos nos permitem dizer que é um sorriso que resiste à apreensão tanto teórica, quanto àquela derivada da (tão concorrida) experiência com a obra. Na vertente do enigma, muitas são as justificativas sustentadas pela questão técnica, o sfumato. Na vertente oposta, o contexto cultural o explica: manuais do século XV, por exemplo, determinavam como as damas deveriam sorrir.

Contudo, foi no já conhecido, e até antigo, livro de Martin Kemp[5], que estava a reflexão que pareceu ser mais instigante ao diálogo. Segundo o historiador da arte inglês, apenas este retrato de Leonardo olha diretamente para o espectador, o que torna a obra tão especial. E “Mona Lisa” sorri para nós e além de nós, afirma Kemp. A forma como o retrato nos olha “nos faz sentir que seremos testemunhas do tipo de segrego prometido pelas sorridentes e enigmáticas damas da “Divina Comédia”[6]. O anjo da “Anunciação” e “São João Batista” prometem revelações semelhantes do inefável.

Além disso, seu corpo ocupa um lugar distinto na composição da cena, o que faz dela imediata e envolvente, produzindo uma presença. “Não podemos deixar de sentir que o artista ficou atraído como nunca, por seu lado, por Lisa Gherardini”[7]. Leonardo se dedicou muito a execução desta obra. Por que teria ficado tão ligado a ela? Porque Leonardo “viu a imagem se transformando num veículo para ideias mais profundas que achava que a pintura devia incorporar”[8].

Desta forma, Kemp nos revela que o sorriso é trabalhado para se transformar em algo universal e não individual (o sorriso de Lisa), o que não retira dele sua singularidade, visto que é único, dentre as obras de Leonardo. Ainda que se aponte para o universal, “Leonardo estava muito consciente das ressonâncias que era capaz de estabelecer entre os pensamentos íntimos de seus retratados e os do espectador”[9], produzindo um efeito hipnótico nesta comunicação direta, que chega a ser descrita como uma indissociabilidade entre a vida de cada um e a vida do mundo[10]. Por fim, parece que o autor nos diz que, tanto do ponto de vista técnico, quanto simbólico, esta imagem de mulher não se estabiliza. E o sorriso é um dos motivos para isso. Estaria aí seu ponto enigmático?

E, resumidamente, qual a leitura de Freud? O sorriso de “Mona Lisa” seria o sorriso da mãe de Leonardo, que ele faz comparecer ainda em outras obras. Uma vez reencontrado esse sorriso, ele é reimpresso em outros momentos pelo artista, como em seu “São João Batista”. Não reencontramos nisso, seguindo os passos de Freud, o enigmático? Sabe-se que o texto de Freud, em 1956, foi alvo da crítica do historiador da arte inglês Meyer Schapiro[11]. Lacan dá ao historiador uma resposta divertida e irônica, na última parte do Seminário 4[12], onde situa a relevância do texto para a psicanálise: nele Freud introduz, para a criança, a “importância da função da mulher fálica e da mãe fálica”[13]. Problemática que ele retomará anos mais tarde no Seminário 19[14], mostrando sua complexidade. “Há um tipo de mãe a que chamamos mulher fálica, termo que não é sem propriedade, mas que empregamos absolutamente sem saber o que queremos dizer. Recomendo-lhes prudência antes de aplicar esse rótulo[15]. Ainda que Lacan afirme que é em outra obra, A Virgem, o Menino e Sant’Ana, que está o osso da demonstração de Freud, o sorriso de Mona Lisa, obviamente, compõe parte importante de sua argumentação.

A questão, portanto, gira em torno do falo enquanto significante, que apenas pode operar a divisão entre os sexos, contudo, está impossibilitado de colocá-los em relação. Logo, não há relação sexual, indicativo de um real em jogo[16].

Em torno do real é uma expressão que podemos usar para falar da operação da arte[17]. E podemos dizer que ela é válida considerando tanto as especificidades de cada obra, quanto  àquelas relativas às diferentes formas de Lacan abordar a arte ao longo do seu ensino[18].

Em R.S.I, Lacan afirma “desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico – que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos – um cômico triste”[19]. A comédia, ao menos aquelas comentadas por Lacan no Seminário 5[20], faria rir porque ela desmascara, a seu modo próprio, a tendência de fazer a relação sexual existir, atributo imaginário do falo encoberto pelo amor. Mas, como nos lembra Lacan, “a comédia nos atinge por mil formulações dispersas. A comédia não é o cômico”[21]. “O amor, eis o ponto com que digo situar-se o ponto forte da comédia clássica”[22]. Assim, o falo estaria para o cômico como o amor para a comédia. Talvez por isso, o objeto esteja em questão no cômico.

A “Mona Lisa” de Leonardo não é cômica, tampouco é uma comédia. Mas ela ri. Por outro lado, cômicas e irônicas são suas releituras e apropriações mais contemporâneas.

Como diz Brousse[23], os artistas nos ensinam sobre os modos de gozo de sua época. Será disso que ri “Mona Lisa”?


[1] Nome de solteira da famosa Mona Lisa, modelo da mais conhecida pintura do artista renascentista. Lisa se casa com Francesco del Giocondo, adotando seu nome, daí a designação La Gioconda, para se referir também a esta obra.
[2] CLARK, K. (1939). Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
O livro de Keneth Clark é considerado “um dos melhores livros sobre Leonardo” por Meyer Schapiro, autor daquela que teria sido, para muitos, a crítica devastadora do texto de Freud “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci” (1910 [1909]). Schapiro afirma ainda que Clark “prestou homenagem a Freud ao reconhecer como admirável sua explicação acerca da pintura de Santa Ana, a Virgem e o Menino Jesus”. Curioso pensar que Clark, admirado por Schapiro, renda homenagem a Freud. Mas isso é uma outra história….
[3] VALÉRY, P. (1894). Introdução ao método de Leonardo da Vinci, São Paulo: Ed. 34, 1998. p. 17 nota.
[4] FREUD, S. (1910[1909]). Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci. In: Arte, Literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
[5] KEMP, M. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[6] Ibid., p. 167.
[7] Ibid., p. 165-66.
[8] Ibid., p. 167.
[9] Ibid.
[10] Ibid., p. 168.
[11] SCHAPIRO, M. (1956). Leonardo and Freud: An Art-Historical Study. Journal of the History of Ideas, Vol. 17, No. 2 (Apr., 1956), pp. 147-178. Ver nota 2.
[12] LACAN, J. (1956-57). O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
[13] Ibid., 441.
[14] LACAN, J. (1971-72). O Seminário, livro 19: …ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
[15] Ibid., p. 137.
[16] As relações entre o falo e o real são trabalhadas por Lacan no Seminário 23. Ele afirma ter tido uma boa surpresa ao reler sua “Significação do falo”, pois havia ali a evocação do nó, antes mesmo de se interessar pelo nó borromeano. E conclui: apenas o falo verifica o real. LACAN, J. (1975-76). O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
[17] Acompanhando o pensamento de François Regnault em Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001, p. 30.
[18] Esquematicamente, e considerando as reflexões de Lacan a respeito da arte, poderíamos dividi-las em três formas, seguindo a definição de Recalcati: a estética do vazio, a anamórfica e a da letra. RECALCATI, M. Las tres estéticas de Lacan. In:  RECALCATI, M. Las tres estéticas de Lacan: arte y psicoanálisis. Buenos Aires: Del Cifrado, 2006.
[19] Aula de 11 de março de 1975.
[20] LACAN, J. (1957-58). O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
[21] Ibid., p. 272.
[22] Ibid., p. 144.
[23] BROUSSE, M. H. Conferências de Marie-Hélène Brousse. In: Arquivos da Biblioteca, v.5, 2008, p. 15-93.
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