#06 - OUTURBRO 2023
Estão Fazendo Arte – Do que ri “Mona Lisa”?
Do que ri “Mona Lisa”?
Flavia Corpas
Associada ao Clin-a
Coordenadora da Comissão de Arte e Cultura
Não pude deixar de rir, acho que de espanto, quando, usando a expressão “sorriso de Mona Lisa” no Google, fui bombardeada por centenas de conteúdos sobre o filme homônimo estrelado, em 2003, por Julia Roberts. O sorriso de “Mona Lisa” realmente desgarrou-se de Leonardo da Vinci e de Lisa Gherardini[1]?
Depois sorri novamente, agora lembrando do historiador da arte inglês Kenneth Clark, nome relevante na literatura especializada sobre Da Vinci, quando diz que “sua arte, e a personalidade que ela revela, é de interesse universal e, como toda grande arte, deveria ser reinterpretada por cada geração”[2]. São muitas as releituras da Mona Lisa: de Marcel Duchamp – L.H.O.O.Q., (1919) – às atuais figurinhas de WhatsApp, passando por Roman Cieslewicz – Mona Tsé-Tung (1976), Nelson Leirner – série Cem Monas (2012), Banksy – Sem título, anos 2000 – e tantos outros. E aqui podemos seguir também o poeta Paul Valéry em sua reflexão sobre Leonardo quando afirma que “o objeto do artista não é tanto a obra, mas o que ela fará dizer, e que nunca depende simplesmente do que ela é”[3].
Fato é que tive que digitar “sorriso de Mona Lisa Leonardo da Vinci” para encontrar diferentes leituras, sobretudo do campo da arte, e distintas daquela feita por Freud a respeito do icônico sorriso. Buscava abordagens mais recentes pois, devido a um antigo interesse pelo texto “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”[4], sabia que a todo momento novas leituras sobre as obras de Leonardo da Vinci, e sobre o próprio, eram produzidas.
A pesquisa revelou a pluralidade de interpretações de tal sorriso. Trata-se de um enigma ou mistério. Ou, não há nada de enigmático ou misterioso. Os opostos nos permitem dizer que é um sorriso que resiste à apreensão tanto teórica, quanto àquela derivada da (tão concorrida) experiência com a obra. Na vertente do enigma, muitas são as justificativas sustentadas pela questão técnica, o sfumato. Na vertente oposta, o contexto cultural o explica: manuais do século XV, por exemplo, determinavam como as damas deveriam sorrir.
Contudo, foi no já conhecido, e até antigo, livro de Martin Kemp[5], que estava a reflexão que pareceu ser mais instigante ao diálogo. Segundo o historiador da arte inglês, apenas este retrato de Leonardo olha diretamente para o espectador, o que torna a obra tão especial. E “Mona Lisa” sorri para nós e além de nós, afirma Kemp. A forma como o retrato nos olha “nos faz sentir que seremos testemunhas do tipo de segrego prometido pelas sorridentes e enigmáticas damas da “Divina Comédia”[6]. O anjo da “Anunciação” e “São João Batista” prometem revelações semelhantes do inefável.
Além disso, seu corpo ocupa um lugar distinto na composição da cena, o que faz dela imediata e envolvente, produzindo uma presença. “Não podemos deixar de sentir que o artista ficou atraído como nunca, por seu lado, por Lisa Gherardini”[7]. Leonardo se dedicou muito a execução desta obra. Por que teria ficado tão ligado a ela? Porque Leonardo “viu a imagem se transformando num veículo para ideias mais profundas que achava que a pintura devia incorporar”[8].
Desta forma, Kemp nos revela que o sorriso é trabalhado para se transformar em algo universal e não individual (o sorriso de Lisa), o que não retira dele sua singularidade, visto que é único, dentre as obras de Leonardo. Ainda que se aponte para o universal, “Leonardo estava muito consciente das ressonâncias que era capaz de estabelecer entre os pensamentos íntimos de seus retratados e os do espectador”[9], produzindo um efeito hipnótico nesta comunicação direta, que chega a ser descrita como uma indissociabilidade entre a vida de cada um e a vida do mundo[10]. Por fim, parece que o autor nos diz que, tanto do ponto de vista técnico, quanto simbólico, esta imagem de mulher não se estabiliza. E o sorriso é um dos motivos para isso. Estaria aí seu ponto enigmático?
E, resumidamente, qual a leitura de Freud? O sorriso de “Mona Lisa” seria o sorriso da mãe de Leonardo, que ele faz comparecer ainda em outras obras. Uma vez reencontrado esse sorriso, ele é reimpresso em outros momentos pelo artista, como em seu “São João Batista”. Não reencontramos nisso, seguindo os passos de Freud, o enigmático? Sabe-se que o texto de Freud, em 1956, foi alvo da crítica do historiador da arte inglês Meyer Schapiro[11]. Lacan dá ao historiador uma resposta divertida e irônica, na última parte do Seminário 4[12], onde situa a relevância do texto para a psicanálise: nele Freud introduz, para a criança, a “importância da função da mulher fálica e da mãe fálica”[13]. Problemática que ele retomará anos mais tarde no Seminário 19[14], mostrando sua complexidade. “Há um tipo de mãe a que chamamos mulher fálica, termo que não é sem propriedade, mas que empregamos absolutamente sem saber o que queremos dizer. Recomendo-lhes prudência antes de aplicar esse rótulo[15]. Ainda que Lacan afirme que é em outra obra, A Virgem, o Menino e Sant’Ana, que está o osso da demonstração de Freud, o sorriso de Mona Lisa, obviamente, compõe parte importante de sua argumentação.
A questão, portanto, gira em torno do falo enquanto significante, que apenas pode operar a divisão entre os sexos, contudo, está impossibilitado de colocá-los em relação. Logo, não há relação sexual, indicativo de um real em jogo[16].
Em torno do real é uma expressão que podemos usar para falar da operação da arte[17]. E podemos dizer que ela é válida considerando tanto as especificidades de cada obra, quanto àquelas relativas às diferentes formas de Lacan abordar a arte ao longo do seu ensino[18].
Em R.S.I, Lacan afirma “desde que se fale algo que tem uma relação ao falo, é o cômico – que nada tem a ver com o chiste. O falo é cômico como todos os cômicos – um cômico triste”[19]. A comédia, ao menos aquelas comentadas por Lacan no Seminário 5[20], faria rir porque ela desmascara, a seu modo próprio, a tendência de fazer a relação sexual existir, atributo imaginário do falo encoberto pelo amor. Mas, como nos lembra Lacan, “a comédia nos atinge por mil formulações dispersas. A comédia não é o cômico”[21]. “O amor, eis o ponto com que digo situar-se o ponto forte da comédia clássica”[22]. Assim, o falo estaria para o cômico como o amor para a comédia. Talvez por isso, o objeto esteja em questão no cômico.
A “Mona Lisa” de Leonardo não é cômica, tampouco é uma comédia. Mas ela ri. Por outro lado, cômicas e irônicas são suas releituras e apropriações mais contemporâneas.
Como diz Brousse[23], os artistas nos ensinam sobre os modos de gozo de sua época. Será disso que ri “Mona Lisa”?