#06 - OUTURBRO 2023
Estão Fazendo Arte
Falar com Ela?
James Alberto de Moura Valeriano
Associado ao Clin-a
Participante da Comissão de Arte e Cultura
No Eixo temático 1 “Só Risos?!”, das XII Jornadas da EBP-SP: R.I.S.o, algumas perguntas são lançadas: como localizar o riso em uma análise e qual sua função?
Uma vez que a arte interpreta e transmite o que se passa na cultura de seu tempo, o que inclui certamente o mal-estar e os modos de gozo, e podendo o psicanalista se servir dela a partir de seu “saber ler de outra maneira”[1] o que essa interpretação traz, seria, assim, possível avançar na proposta desse eixo de investigação a partir do cinema? Particularmente, do cinema do diretor Pedro Almodóvar?
Podemos inferir que no cinema almodovariano (sim, ele se tornou um adjetivo, constituiu um modo próprio de organizar os semblantes – como da mascarada, da comédia do falo – para apontar para o caráter perverso do desejo, dizer do indizível e, portanto, da não relação sexual) há uma promoção de um witz, tendo como resto da experiência do encontro com essa arte, o fenômeno do riso em suas variadas acepções – o riso nervoso, sobretudo diante da falta, o riso do espanto, o riso da ironia? Vejamos…
Sabemos que uma paródia é uma forma narrativa que, mais antiga que a novela e diferente da ficção, não põe em dúvida o Real[2]. E Almodóvar vai se valer dela para expressar certos elementos da cultura.
Lacan faz referência ao witz, conceito freudiano que não quis traduzir, ao longo de todo o seu ensino, admitindo a condição tragicômica do sujeito, uma vez que a tragédia e a comédia não são incompatíveis[3].
Do Seminário VI, de Lacan, trago um recorte de como ele articula comédia e psicanálise, que muito nos remete ao cinema de Almodóvar:
Mas a comédia, por sua vez, é um apanha-desejos muito curioso. Cada vez que uma armadilha para desejos funciona, estamos na comédia. É o desejo que aparece ali onde não se esperava. O pai ridículo, o devoto hipócrita, o virtuoso às voltas com um caso adúltero, é com isso que se faz comédia. É preciso haver esse elemento que faz com que o desejo não se confesse. Ele é mascarado e desmascarado, escarnecido, punido conforme o caso, mas é só aparência, pois, nas verdadeiras comédias, a punição nem mesmo roça a asa de corvo do desejo, que escapa absolutamente intacta (…). O desejo, na comédia, é desmascarado, mas não refutado[4].
Proponho o filme “Fale com Ela”[5] para esta reflexão, pois há um impossível, uma ironia colocada desde o título. Como falar com ela, que está absolutamente adormecida, em coma?
Não será o único filme de Almodóvar em que um corpo quase morto surge. E, como no dizer de um dos personagens do diretor, “não é fácil se livrar de um corpo”[6].
Nesse filme, temos uma bailarina – e seu corpo em um estado inerte, vegetativo –, cuidada por um enfermeiro chamado Benigno. Um cuidador benigno? Almodóvar planta encontros improváveis, filma com seu “El Deseo” (nome de sua produtora) o laço desse cuidador benigno com sua amada adormecida. Ele só fala com Ela, pois supõe ali que é escutado e que é amado… E que amante nunca supôs no outro um saber? Nesse enlace de puro imaginário, Benigno toma o corpo inerte como objeto do seu amor.
Após essa passagem ao ato, Benigno desaparece, sucumbindo ao corpo feminino dormente. Em poucas palavras, seu único amigo, Marco, afirma: “Benigno é inocente!”. De que inocência se trata?
O fato é que, após o ato, surpreendentemente, a bailarina passa a gerar uma vida e desperta do estado de coma!
A síndica fofoqueira do apartamento que nosso anti-herói morava, ainda se espanta, junto ao amigo do tolo Benigno, nem querendo saber sobre a causa do crime: Por que razão a transgressão de Benigno não tinha gerado repórteres no prédio?
Em uma frase, Benigno localiza sua posição subjetiva quando, em um golpe de espanto, revela para seu amigo Marco que deseja casar-se com a bailarina em coma: “eu não tenho nada, invento tudo”.
Miller, em “Gays em análise”, esclarece-nos sobre o mais além do Édipo:
Evocamos a palavra espirituosa de Lacan, la père-version. O que quer dizer, exatamente, père-version? Eu a compreendo assim: esse `witz” de Lacan é uma zombaria do Édipo. O Édipo clássico era o que opúnhamos à perversão, que não havia norma, ou que a dita norma era da mesma natureza que a perversão. A via edipiana era voltar para o pai enquanto se ocupa de uma mulher, para barrá-la e, também, para se embaraçar com ela.
Para Lacan, dizer père-version – depois de ter formulado, desde o começo dos anos sessenta, que o termo perversão era simplesmente “ridículo” – é classificar o Édipo como uma forma de perversão. É o fim do privilégio do Nome-do-Pai[7].
Benigno fala com sua amada e faz do corpo dela um corpo vivo, revelando assim seu modo de gozo mais além do Édipo. Dessa forma, estaria esse incrível cineasta a altura do seu tempo, fazendo passar, pela via do witz para alguns, o caráter mais ilegal, mas não ilegítimo, do desejo?[8]