#06 - OUTURBRO 2023
Entre fossos e janelas, caminham o real, o objeto a e o WITZ?
Cláudia Reis
Membro da EBP/AMP
Em recente entrevista[i], o ator Marco Nanini faz uma série de articulações que a nós, que estamos às voltas com o tema do R.I.S.o, interessam muito. Fala a respeito do ridículo e o riso, do improviso e o tempo da plateia bem como do sofrimento real do comediante “que tem que ter uma chave na comédia senão fica muito pesado”[ii]. O entrevistador destaca um episódio da recém lançada autobiografia[iii] de Nanini, em que este fora visitar o pai que estava em estado terminal devido ao avanço de um câncer. Ao sair do hospital, vai para o teatro onde atuava em uma comédia, deixando o pai em agonia. Nanini comenta: “Foi isso aí, foi impactante. Eu fiz a comédia direitinho mas eu tava com aquilo na garganta e durante um improviso eu disse: meu pai está morrendo, vocês estão rindo! Era verdade e eles morreram de rir. Eu aí vi que é isso mesmo, a vida é assim.”
Faço um recorte neste ponto que me remeteu a uma das questões deixadas por Rômulo Ferreira da Silva no Argumento das Jornadas e é uma das perguntas que atravessam este escrito: “Podemos dizer que o riso é efeito da caída do semblante que deixa escapar algo do real que atinge o corpo?”
Na orientação lacaniana, temos que o real se inscreve para cada um pela via do trauma. Descrito por Freud como um acontecimento externo e inesperado que invade a vida psíquica e provoca excitação, o trauma seria de difícil assimilação. Algo dessa excitação provocada no corpo permaneceria sem ligação, um traço sem sentido que não deixaria de insistir.
Para Lacan, o encontro com o real tem sempre algo de inassimilável, porta um resto sem representação que remete à impossibilidade da verdade ser dita toda. Estamos aqui situados em seu ensino, na aula de 12 de fevereiro de 1964[iv]. Retoma a cena do Fort-da, descrita por Freud observando seu neto, onde temos: a criança no berço, a porta por onde a mãe sai e o “fosso” ao lado do berço para onde a criança olha que é o lugar vazio deixado pela mãe. Diante da escuridão do “fosso”, em lugar de se jogar, a criança constrói uma janela, ou seja, joga o objeto que é o carretel e o recolhe, repetidas vezes, enquanto evoca a linguagem dizendo “Fort-da” … “aqui ou ali”. Segundo Lacan, “A este objeto daremos ulteriormente seu nome de álgebra lacaniana – o a minúsculo”[v]. Quanto à invenção da criança, “O que ele visa é aquilo que, essencialmente, não está lá enquanto representado.”[vi]
Assim como uma janela é a abertura que proporciona iluminação e ventilação no interior de um ambiente, possibilitando a quem está dentro olhar fora e colocar uma perspectiva noutro lugar, na cena descrita acima, constatamos a primeira invenção da criança para suportar o troumatisme que é o buraco da ausência de representação. Segundo Ansermet[vii], o traumatismo se produz quando a criança, confrontada com o gozo do Outro, depara-se com a evidência inevitável do real sexual, sempre faltoso que se revela traumático. Aloja-se na articulação entre realidade e realidade psíquica e é sempre relativo.
Temos que o sujeito nasce na palavra, não a partir da mãe que partiu, mas a partir do furo que ficou. Consiste aí o mistério da origem de cada um, assim como as invenções diante deste real.
Como o riso se articula ao objeto a?[viii]
Questão a ser percorrida ao longo deste tempo de preparação das Jornadas e neste biênio de trabalho na EBP-SP. Para deixar uma contribuição, destaco uma articulação de Lacan por ocasião do que chamou de excomunhão. Aponta que não lhe escapou algo de vasta dimensão cômica nesse contorno que se liga a uma posição que reconhece ter ocupado e a de colegas e alunos em relação a ele, a de estar sendo negociado. Diz-nos Lacan: “Mas, se a verdade do sujeito, mesmo quando ele está em posição de mestre, não está nele mesmo, mas, como a análise o demonstra, num objeto, velado por natureza – fazê-lo surgir, esse objeto, é propriamente o elemento de cômico puro”.[ix] Considera ser oportuno apontar esta dimensão porque talvez ela fosse
objeto de uma moderação indevida, de uma espécie de falso pudor, se alguém a testemunhasse de fora. Do lado de dentro, posso dizer-lhes que essa dimensão é perfeitamente legítima, que ela pode ser vivida do ponto de vista analítico, e mesmo a partir do momento em que é percebida, de maneira que a supera – isto é, sob o ângulo do humor, que não é aqui senão o reconhecimento do cômico.[x]
A janela analítica permite perceber e fazer cair a verdade do sujeito.
O real no último ensino
No último ensino de Lacan, o trauma é a fixação dos encontros de lalíngua com o gozo que se fixa aí. São as palavras, como elementos externos, que traumatizam o corpo do ser falante, trazem sentidos que marcam a existência de cada um, mas introduzem também aquilo que jamais terá sentido, ou seja, um furo na simbolização. O que concede ao encontro com a linguagem o valor de um trauma é esse furo que foge ao entendimento pela via do sentido, funda um gozo que não será absorvido na cadeia das significações e que Lacan nomeou de real. Para a psicanálise, no que concerne ao real não há previsibilidade possível, o que funda para o ser falante a exigência de ter que se virar com a contingência e inventar os laços que o sustentem. O encontro com o real – e aqui temos questões fundamentais sem resposta como o real sexual e a morte – é o tempo em que se tem a possibilidade de verificar que aquilo que não cessa de não se escrever pode passar por uma inversão ao cessa de não se inscrever.
Um equívoco?
Com Gustavo Stiglitz[xi] temos que o Witz é uma operação que detém um equívoco e um destinatário onde ocorre o riso. “É um instrumento do qual se serve a língua para enodar algo do que não se pode dizer. (…) Quando há efeito Witz, se trata, não sem os outros, o excesso que não tem palavra, para remover do doloroso silêncio”.
Retomando a questão posta no início, Nanini se vale de um momento de improviso no seu trabalho e do tempo da plateia, especificidade que talvez só os atores e a arte reconheçam, e inventa sua “tirada espirituosa” – parodiando a tradução que Lacan prefere para Witz. Temos a revelação trágica que se desvela ao mesmo tempo que se dilui em meio a comédia, provocando risos. Poderíamos ousar dizer que Nanini construiu sua janela?
Colhemos efeitos dos nossos atos apenas no depois. Parece que para Nanini houve um efeito liberador. Aquilo que “tava preso na garganta” saiu pela janela que construiu: “Eu aí vi que é isso mesmo, a vida é assim.”