BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
DUAS CENAS INFANTIS RELATIVAS À VERDADE
Cássia Maria Rumenos Guardado
AME, membro da EBP/AMP
Uma ficção
Em A Caça[1], filme sueco dinamarquês de 2012, uma menina de 4 anos, cujo vizinho era também seu professor na escola, e de quem gostava muito, diz que ele havia feito algo com ela que de fato não era verdade, mas que, no entanto, provoca de imediato uma reação das autoridades da escola em relação ao professor, como também iniciativas para esclarecer com a menina o que havia acontecido. É chamado um psicólogo para tal procedimento que vai induzindo com suas perguntas as respostas da menina. Vê-se como os adultos partem de um pressuposto de que foi verdade o que a menina disse, mesmo quando ela diz claramente que o professor não havia feito nada e que “ela tinha dito besteira”. Fala também ignorada pelos pais da criança, que ainda insistem em dar outras significações para essa manifestação da menina, reafirmando a crença de que havia de fato acontecido o que ela tinha dito primeiro. Com a presença e participação do psicólogo e dos responsáveis pela escola, levanta-se a hipótese de que o professor teria feito a mesma coisa com outros alunos e procede-se à “investigação” também nesse âmbito, obtendo-se “confirmação” da suspeita. O professor é preso, mas já tinha sofrido várias formas de violência, segregação e exclusão na pequena cidade onde tudo se passa, de várias pessoas próximas e amigas, como os pais da menina, exceto de um amigo em especial que de fato não endossa tal versão, ou père-versão, criada em torno do que a menina disse em princípio, mas depois retificou e não foi ouvida. O professor só é solto quando um detalhe presente nos relatos muito semelhantes das outras crianças revela o carácter de ficção desses relatos, inocentando, portanto, o professor. Mas o estrago já estava feito. Estrago esse que deixa um resíduo de ódio e violência para além do que já tinha se manifestado diretamente com o professor, e que aparece no final aberto e enigmático do filme e que dá sentido a seu nome. Nesse lugar, os meninos ao completarem 15 ou 16 anos ganham sua arma de caça numa cerimônia formal da qual participa toda a comunidade, seguida de uma caçada para iniciação daquele que chegou a esse ponto. O final do filme mostra esse momento em que o filho do professor é quem recebe sua arma e faz sua iniciação. O interessante é que o filme termina com um tiro que se ouve, mas não se vê se acertou a caça…
Pensando nesse filme para além da ficção e da questão da própria menina e sua família, inclusive seu irmão adolescente muito interessado nos temas sexuais, me ocorreu que é bastante oportuno para os tempos que correm por aqui e o que temos vivenciado em nossos tristes trópicos.
Uma cena cotidiana
Um menino de 4 anos, ao se despedir da avó, lhe diz que vai sentir muitas saudades dela, ao que a avó responde que ela também vai sentir muitas saudades dele. Aí ele pergunta: “Você vai sentir saudades até eu virar estrelinha?”. A avó, surpresa e sabendo o que essa expressão recobre, balbucia timidamente que isso ainda vai demorar muito, mas não fica satisfeita com sua resposta, e então diz, lembrando de Lacan: “Você não vai virar estrelinha!”. Ao que o menino, voltando-se para o pai, diz em franco júbilo: “Papai, eu não vou virar estrelinha!”.
Diante dessa cena, não pude deixar de lembrar de um seminário antológico ditado aqui em São Paulo, por Alain Grosrichard, sobre a mentira magnânima, a partir de Rousseau…. Que belo contraponto ao ódio e à violência expressos e exercidos sem nenhum constrangimento, e autorizados por muitos nos tempos que correm aqui e acolá.
[1]A Caça – Direção Thomas Vinterberg. Suécia/Dinamarca, 2012. Disponível em Amazon Prime Vídeo.