Bianca Dias[*] Diante das imagens de horror que nos são arremessadas cotidianamente desde o início…
Do confinamento dos corpos ao desconfinamento da pulsão
Camila Popadiuk
Associada ao CLIN-a
O pulso – Titãs
O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa
Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose e anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe e leucemia
E o pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa
Hepatite, escarlatina, estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo, esquizofrenia
Úlcera, trombose, coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes, asma, cleptomania
E o corpo ainda é pouco
O corpo ainda é pouco
Assim
Reumatismo, raquitismo, cistite, disritmia
Hérnia, pediculose, tétano, hipocrisia
Brucelose, febre tifoide, arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie, cãibra, lepra, afasia
O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco
Assim
Em certo tom chistoso, essa música poderia atualizar-se assim: O pulso ainda pulsa/E o corpo ainda é pouco/Ainda pulsa/Ainda é pouco/ “histeria”, “gripezinha”, Covid e pandemia.
Desde que iniciamos o distanciamento social como saída necessária à crise sanitária atual, esta música cantada pela voz pulsante de Arnaldo Antunes se apresenta frequentemente em minha cabeça. Lembro-me que ela também se fez presente em uma das questões de biologia na ocasião do vestibular. Biologia, aquela disciplina, que dentre tantos conteúdos ensinados, o que mais me intrigava era a finitude da vida em sua relação com o acometimento do corpo pelas doenças. Mais tarde, graças à psicanálise, este interesse particular enveredou-se em uma nova noção da morte, para além da morte biológica, a morte referente à lógica significante, implicando neste affaire[1], o corpo.
Sob a perspectiva da psicanálise, o que ata a vida ao corpo é o gozo, propriedade do ser falante. Deste modo, a escolha pelo texto “Biologia lacaniana e acontecimento de corpo”[2], de Jacques-Alain Miller, dispensa justificativa prévia. Neste texto, ele afirma que há uma definição de sintoma que fora negligenciada, isto é, o sintoma como acontecimento de corpo. A fim de sustentar esta tese, ele retraça de maneira meticulosa o percurso conceitual da pulsão na obra de Freud e no ensino de Lacan, neste, conceitualizada como gozo. J.-A. Miller culmina na seguinte perspectiva que ele chamará de “biologia lacaniana”: “a vida condição do gozo, a condição de corpo, a condição significante”[3].
Logo no início do texto, ele faz a seguinte afirmação: “Nós não sabemos o que é a vida. Nós só sabemos que não há gozo sem a vida. E por que não formular esse princípio sob esta forma de que a vida é a condição do gozo? Mas não é tudo. Trata-se precisamente da vida sob a forma do corpo. O gozo em si é impensável sem o corpo vivo, o corpo vivo que é a condição do gozo”[4]. E mais a frente, ele diz: “Admite-se que o sintoma é gozo, satisfação substitutiva de uma pulsão, como diz Freud […] Na medida em que o sintoma constitui um gozo no sentido de satisfação de uma pulsão e, na medida em que o gozo passa pelo corpo, que ele é impensável sem o corpo, o corpo como forma ou melhor, como modalidade, como modo da vida, a definição do sintoma como acontecimento de corpo é inevitável”[5].
Estas duas passagens condensam a densidade deste trabalho realizado por Jacques-Alain Miller e que vale a pena ser revisitado. O que nos interessa neste momento em particular é a articulação da disrupção do gozo ao novo modus operandi em que nos encontramos: o confinamento dos corpos.
A pulsão, ao realizar seu circuito, marca o corpo e o investe de uma satisfação paradoxal, diferenciando-se por isto mesmo do organismo vivo da biologia. De um lado, tem-se o corpo imaginário, cuja jubilação “não é uma satisfação de uma completude natural, mas uma satisfação ancorada em uma falta e estabelecida sobre uma discordância”[6] e de onde poderia supor a proveniência do Um, dado a “evidência imaginária da unidade do corpo”. De outro, tem-se o corpo simbólico, atravessado pelo significante, provando “que é no nível da linguagem que eles alcançam a unidade do elemento, do significante Um, porque na natureza, eles alcançam apenas a unidade do Todo. O que viria ao apoio da tese de Lacan que alcançamos o Um a partir do significante e não a partir da natureza”[7].
Já o corpo vivo, ele não é nem o corpo simbolizado, nem o corpo imagem. É vivo. Trata-se, com efeito, do corpo afetado pelo gozo, precisa J.-A. Miller[8]. Ele assinala a importância de se dar sentido ao adjetivo “vivo”, “mas também alcançar por qual viés, por qual incidência o afeto do gozo advém ao corpo.”[9] E, sob esta perspectiva, ele ressalta as condições que estão aí em jogo: a condição de corpo e a condição de significante, se considerarmos a “fórmula de Lacan que o significante é causa do gozo”[10]. Ele avança, concluindo logicamente que “se o sintoma é uma satisfação da pulsão, se ele é gozo condicionado pela vida sob a forma do corpo, isto implica que o corpo vivo é predominante em todo sintoma”[11].
J.-A. Miller reitera que Freud “nota que a psicanálise não se interessa à substância viva, mas às forças que operam na substância viva, e são as pulsões”[12]. Daí o interesse da psicanálise em explorar a relação do ser falante com seu corpo que, em última instância, implica sua relação subjetiva com a morte, isto é, com a pulsão de morte[13].
O isolamento dos corpos escancarou aquilo que a pulsão comporta de mais original: a busca por uma satisfação fora do sentido. A ilusão do tempo em abundância, tão amplamente difundida no início do confinamento – através de soluções revestidas de entretenimentos dos mais variados possíveis – apenas denota a dificuldade de cada um de lidar com o vazio estruturante. As inúmeras propostas de como preencher o tempo indicam, justamente, a presença deste vazio. E o gozo do corpo, pela via do excesso – largamente manifesta em diversos pequenos enunciados – coloca, ao mesmo tempo em evidência, a presença deste vazio, na medida em que se tenta tamponá-lo, e o embaraço de se ter um corpo que goza.
Desde o confinamento, há aqueles que passaram a beber todos os dias, outros fizeram da limpeza da casa e dos corpos um ritual obsessivo; alguns outros não cessam de comer – um deles inclusive chegou a dizer: “dá-lhe pulsão oral: quando dou para comer e fumar… tá compulsivo!”. Há também aqueles que se tornaram “esportistas”, cultivando a beleza do corpo. Têm também aqueles que fizeram da chamada de vídeo a condição de uma conversa, conservando o enquadramento pelo olhar. Têm outros tantos que nunca se sentiram tão protegidos dentro de casa, amenizando uma fobia social que, doravante, travava obstáculos.
Algumas destas manifestações claras da pulsão sinalizam seu caráter insaciável, cuja satisfação exigida e a satisfação obtida não se sobrepõem, atestando assim, que a pulsão não visa o objeto, mas que ao contorná-lo, ela retira uma satisfação de seu próprio circuito. Já a consistência maciça do sintoma, sustentado pela fantasia, revela também a gramática pulsional privilegiada de cada um, se admitimos que “o sintoma é gozo, satisfação substitutiva de uma pulsão”[14].
Neste contexto onde a suspensão física do encontro dos corpos instalou-se em prol da preservação da vida, parece que a intrusão do gozo passou a se manifestar mais abertamente. A vida a ser preservada é aqui entendida como a vida enquanto condição do gozo, cujo corpo é seu suporte. Já o confinamento, ele é uma resposta que por si só certifica a presença do real que nos assola, isto é, do vírus. E quanto mais o acento é colocado na vida, mais a pulsão dá suas caras, mais o gozo invade o corpo. Poderíamos assim pensar que o confinamento dos corpos levou a um desconfinamento da pulsão.
Este encontro repentino com o real e o confinamento como uma resposta põe à mostra a relação que cada um tem com seu corpo, e, tão logo, com o objeto que aí está em jogo. A suspensão do encontro espacial colocou mais ainda[15] em evidência isso que pulsa em uma temporalidade fora de medida, mas que até então estava regulada pelos hábitos da vida cotidiana. O gozo, antes moderado pelo encontro físico dos corpos, parecia deixar disperso isso que se encontra confinado no corpo. Para alguns, é apenas o retorno com força de um gozo já familiar. Para outros, o despertar diante da estranheza que invade o corpo.
Para finalizar e a título de prevenção, sirvo-me novamente de outra música de Arnaldo Antunes intitulada “Lavar as mãos”: