Kátia Ribeiro Nadeau - Associada da CLIPP “Minha alma tem o peso da luz. Tem o…
#Conversa.com – Flávio Ricardo Vassoler por Marcelo Augusto Fabri de Carvalho
Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor das obras O evangelho segundo Talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014) e Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018), além de ter organizado o livro de ensaios Fiódor Dostoiévski e Ingmar Bergman: O niilismo da modernidade (Intermeios, 2012) e, ao lado de Alexandre Rosa e Ieda Lebensztayn, o livro Pai contra mãe e outros contos (Hedra, 2018), de Machado de Assis.
Marcelo de Carvalho: Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (01/07/18), você comenta a tradução de novas edições de textos clássicos da literatura erótica: 120 dias de Sodoma (Sade), História do olho (George Bataille) e Três filhas da mãe (Pierre Louys), articulando a sexualidade e a violência. Bataille escreve, em outra obra sua (O erotismo), que “o sentido último do erotismo é a morte”. São textos de diferentes momentos históricos, cuidam de gozo, fantasia, violência, morte e interessam à psicanálise. Pensando no tema das Jornadas da EBP (Escola Brasileira de Psicanálise/seção SP), “Amor e sexo em tempos de (des)conexões”, qual seria, na sua opinião, a relação entre o erotismo/morte e o amor/laço social?
Flávio Ricardo Vassoler: Quando desvelamos os segredos das camarilhas dos poderosos através do buraco da fechadura, deparamos com uma associação umbilical entre sexo e poder. Levantamos a saia, então, de Calígula, Luís XIV, Beria (braço direito de Stálin), Kennedy, o filho de Saddam Hussein, entre tantos outros exemplos tão pervertidos quanto paradigmáticos.
O sexo, historicamente, tende a ejacular uma verdadeira microfísica do poder – o poder sobre o próprio corpo e, principalmente, sobre o corpo alheio. O poder da submissão que, no limite (com ou sem consenso), se irradia até práticas de aviltamento radical da alteridade: dor, humilhação, prostração e flagelamento para se chegar à petite mort, expressão sintomática de que os franceses lançam mão para falar sobre o gozo como uma fusão entre êxtase e violência esbaforida – e mórbida. Temos aqui uma síntese vertiginosa da empiria orgíaca em Sade, Bataille e Louÿs.
O amor, por sua vez, pressupõe, ao menos arquetipicamente, o entrelaçamento entre o eu e o tu. Pitágoras, certa vez, disse que o amigo é um segundo eu. Kierkegaard redarguiu, séculos depois, que o amigo é o primeiro tu. Com a competição encarniçada que nos socializa, o amor desponta sob o prisma da excepcionalidade. Não à toa, então, o caráter emancipatório do ato sexual – uma bela oportunidade de comunhão – se vê revertido em sadismo e achincalhamento do outro quando a deformação do poder revela sua capilaridade microfísica.
Marcelo de Carvalho: Você menciona, ao final do artigo, que, aqui no Brasil, segundo a ONG Transgender Europe, vivemos no país que mais mata transexuais no mundo, sendo que também, segundo o site de vídeos eróticos Redtube, o Brasil lidera o ranking de buscas por pornografia transexual (dados de 2017). Como poderíamos relacionar estas duas informações? Seria exato pensarmos que não existe diferença entre aquilo que é do mundo virtual e do mundo dito “real”?
Flávio Ricardo Vassoler: A subjetividade é plástica e indômita, a despeito dos discursos e práticas identitários que se querem (e nos querem) estanques e unidimensionais. O resultado da pesquisa divulgada pelo site erótico Redtube nos revela que, sob o respeito diurno, autoritário e hipócrita à identidade historicamente hegemônica, há toda uma gama de práticas desviantes e noturnas que, longe do olhar/juízo alheio, busca, com sofreguidão, suas formas de expressão.
Não à toa, é bem possível encontrar homoerotismo sob a farda e a batina – se os militares e o clero proscrevem a homossexualidade, os desviantes uniformizados bem podem tornar sorrateiras suas práticas nas antecâmaras de casernas e sacristias. O mesmo raciocínio vale para a hipocrisia matrimonial, instituição que tanto vem municiando a ironia literária. Maridos/pais são tidos como arquétipos de poder/sexualidade, mas, como bem nos mostra o Redtube, o aviltamento do feminino em si mesmo – a noção de que o eu precisa reproduzir o arquétipo autoritário in toto para ser aceito – pode levar o indivíduo a exprimir sua subjetividade indômita como o reverso de seu papel social diurno. É assim que garotas de programa e transexuais relatam que muitos homens casados e com filhos querem ocupar o polo tido como passivo – tradicionalmente, o “feminino” – nas relações sexuais contratadas.
Marcelo de Carvalho: A contemporaneidade traz desafios para a psicanálise, a começar pela radical transformação de um supereu que, se na passagem do século 19 para o século 20, era interditor (“Não goze!”), hoje traz, ao contrário, o imperativo oposto (“Goze!”). Lacan inclusive associa este imperativo superegoico, no seu texto “Kant com Sade” (Escritos, 1966), com o que Kant chama “imperativo categórico”. Qual a sua opinião sobre os efeitos deste empuxo ao gozo e do discurso capitalista nos seres humanos?
Flávio Ricardo Vassoler: Há um teor emancipatório na reversão da interdição para a sanha por prazer, sobretudo se pensarmos nas proibições historicamente configuradas para o prazer feminino. Ainda assim, como a sua questão bem trouxe à tona, a noção imperativa do gozo não pode deixar de ser associada às tendências do turbocapitalismo contemporâneo, que, em sua sociopatologia, coisifica o prazer como um nicho de mercado e fustiga o desejo como ciranda de consumo.
Se, como pensou José Ortega y Gasset, “eu sou eu e minhas circunstâncias”, a liberdade sexual desponta como a possibilidade de o ser acompanhar a névoa de sua condição. No entanto, se passamos a ser sujeitados por um processo de gozo coercitivo que baliza a nossa possibilidade de felicidade, o desejo se torna cativo do labirinto de sua expressão imperativa. Mais uma vez, a expressão francesa petite mort dá o tom para que pensemos sobre o caráter mórbido da sexualidade coisificada, de modo que, em meio à sociedade gozosa, os crescentes índices de depressão e infelicidade nos apresentem as metamorfoses da castração.