Bianca Dias[*] Diante das imagens de horror que nos são arremessadas cotidianamente desde o início…
AND YET, AND YET…
Silvia Jacobo – Associada ao CLIN-a
“Tu materia es el tiempo,
el incesante tiempo,
eres cada solitario instante.”
Jorge Luis Borges
Borges sonhava o seu Paraíso como uma espécie de biblioteca, mas não como uma biblioteca infinita, já que considerava que havia algo incômodo e enigmático em todo infinito, ele a imaginava feita “sob medida do homem, uma biblioteca que permitisse o prazer da releitura, o sereno e fiel prazer do clássico e as agradáveis surpresas do achado e do imprevisto[1]”.
A descoberta, o imprevisto, fazem parte de uma biblioteca viva que promove o laço, que procura e supõe um leitor na subjetividade da sua época, um leitor que se surpreenda e que, como Lacan dizia, referindo-se aos seus Escritos, ponha a sua parte.
Revisitar “A Erótica do Tempo”, seminário proferido por Jacques-Alain Miller durante o X Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, no Rio do Janeiro, em abril de 2000, foi um achado num momento em que a irrupção da pandemia perturbou a experiência subjetiva do espaço e do tempo. Esta fala de Miller constitui uma bússola que orienta a elaboração necessária neste tempo estranho de compreender que, às vezes, volta para o limite do instante de ver.
Miller retoma “flashes” da história, da geometria, da física, da matemática e da filosofia para dar conta do modo como a espacialização do tempo implicou o seu domínio, para finalmente demonstrar a relação conflitiva entre o tempo e o verdadeiro: “Aproveitamos a ocasião para notar nas formas imemoriais o esforço para subtrair do tempo o verdadeiro, e projetá-lo na atemporalidade (…) como se o esplendor do verdadeiro exigisse sua retirada do tempo[2]”.
Vale dizer que a história do tempo acha seu sentido na eternidade, demonstrando que o que está em jogo é como subtrair o ser ao tempo, trata-se da operação de uma “foraclusão do tempo”.
A leitura deste seminário nos aproxima às valiosas referências literárias, filosóficas e científicas e revela a profunda implicação ética do tratamento do tempo em nossa prática.
A sessão analítica não se presta à espacialização do tempo, rejeita o contínuo, o homogêneo e linear e dá lugar ao tempo que ex-siste à cronologia.
Miller desenvolve o tempo da retroação que objeta o tempo linear e destaca que a atualização do passado no presente constitui a invenção freudiana do inconsciente. Ante a atemporalidade do inconsciente, Lacan introduz a temporalidade do sujeito marcada pela fugacidade e a evanescência, (…) “o sujeito é a temporalização do par significante[3]”. Assim, o sujeito do desejo é como essa báscula incessante entre o ser e o nada que desliza na cadeia significante[4]”. A temporalidade do sujeito é a do instante, um presente do qual se subtraiu toda a duração.
No entanto, se o inconsciente freudiano não conhece o tempo, a libido, ao contrário, o conhece. Miller destaca o tempo do Eros no nível do amor, do desejo e do gozo e contrapõe a temporalidade fugaz do sujeito à densidade do objeto a.
O objeto a dá ao tempo uma espessura, uma consistência, uma inércia, uma duração e constitui o fator que desregula o desenrolar uniforme do tempo.
A duração, então, “acompanha o fato de sofrer e de experimentar o prazer, de gozar, razão pela qual Lacan teve que acrescentar ao status do sujeito o de falasser. O falasser não é o sujeito, é o corpo como falante[5]”.
O tempo afeta o corpo, o tempo faz sintoma. Miller o destaca na operação histérica, que obtém uma continuidade do desejo por meio da suspensão do gozo, a procrastinação no obsessivo que faz da suspensão o gozo mesmo, a precipitação na mania e o tempo eterno na melancolia. Resulta precioso se deter nas outras formas em que Miller descreve o modo em que o tempo afeta o corpo: a suspensão, a surpresa, a espera e o acontecimento imprevisto.
O tempo se experimenta em função dos modos de gozo, a densidade do presente está dada pela satisfação pulsional de cada um.
A inquietante estranheza que provocou a irrupção do real da pandemia e do confinamento tem revelado o nó entre o tempo e a satisfação; a angústia se apresenta na iminência, na presença do sem limite em que os semblantes vacilam e o Outro se apresenta inexistente.
Esta experiência interpela o falasser no seu modo de satisfação, revela o real do gozo e confronta-o com o impossível de suportar.
Concluo com as palavras do artista “(…) and yet, and yet… negar a sucessão temporal, negar o eu, negar o universo astronômico, são desesperos aparentes e consolações secretas. (…) O tempo é a substância da qual estou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio, é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre, é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, desgraçadamente, é real, eu, desgraçadamente, sou Borges[6]”.