Boletim Fora da Série das Jornadas da Seção SP - Número 05 - Novembro de…
A verdade de todas as coisas
Atanásio Mykonios (Membro do Grupo Crítica Social)
A criação é um ato, proporcional a uma subversão. Muitas vezes, entendemos a subversão como a interversão de condições em senso-comum. Por longo tempo, a subversão esteve presa aos revolucionários de esquerda ou do espectro da extrema-esquerda. Subversão e revolução pareciam caminhar de mãos dadas. O subversivo era temido, especialmente em ambientes de aparente normalidade ou sob a repressão política, econômica ou social. Interverter ou perverter, em certo sentido implica mudar os rumos ou mudar a imagem daquilo que vemos como verdade. A criação inverte algo, pode abrir um buraco naquilo que aparentemente é vivido e significado como normal. Mas, afinal, qual o poder de uma criação?
A criação surge, parafraseando Hegel, em grande medida, com a ruína do mundo real, o real como a verdade de todas as coisas. Quando queremos apenas e tão-somente reviver a verdade de todas as coisas, não temos nenhuma necessidade de criar, no máximo de nossos horizontes, quem sabe, reproduzir o estado de coisas, repeti-lo à exaustão, encontrar pequenos elementos que nos dão algum prazer, diante da verdade de todas as coisas. A verdade de todas as coisas parece estar estampada no mundo que também parece verdadeiro. Tudo está aqui ou ali, do jeito que queremos ou do modo como nos acostumamos a interpretar a verdade de todas as coisas. Isto é tão importante que vivemos boa parte de nossa transitoriedade, como se estivéssemos seguros no meio da verdade de todas as coisas e assim, por um passe de mágica, transformamos até mesmo a arte – cujo princípio é a subversão e a perversão – em instrumentos religiosos para que, com seus ritos, possamos reproduzir a verdade de todas as coisas. Quando estamos seguros, não temos necessidade alguma de criar, apenas de reproduzir.
Platão, em alguma medida, parece ter razão ao afirmar que a única e verdadeira obra de arte é o que chamou de “protótipo”, o primeiro. O primeiro sopro, a primeira revolução interna, o primeiro grito e a primeira sensação, que deixa de ser exata, que abala, que estremece, que cria rachaduras no mundo da verdade de todas as coisas. Criar é o ato supremo em que nós nos desfraldamos de modo único e absoluto, é o tiro no escuro, é a destruição de nós diante da verdade de todas as coisas. Criar não pode ser um ato reprodutivo, um mantra, como em ritos religiosos nos quais podemos atingir nossos transes pessoais. A criação vem da extrema necessidade de romper, interverter, inverter, fazer ruir e é por isso que o ato, o fazer-criar tem um componente extraordinário, é o ato supremo, a revolta total contra a verdade de todas as coisas. O fazer-criar é o apelo de cada um quando surge o momento decisivo, criar, em sentido radical, é o ato de coragem, que revela a compaixão para com o mundo que, por ter se tornado a verdade de todas as coisas, tais devem ser totalmente expostas, suas vísceras têm de ser removidas, refeitas. Tudo, na verdade de todas as coisas têm de ser revoltas e cuspidas. O criar e o fazer-criar surge dessa tempestade que é profundamente histórica, humana, é a revolta que nos dá a necessidade imperiosa de mergulharmos no nada para criar. Não há nada mais implicante, nada mais extraordinário do que o fazer-criar, e quando ainda pudermos nos dar esse direito supremo, o direito do homem para além de si, como Friedrich Nietzsche tantas vezes nos apontou. Que a criação nos desvele, nos desnude, nos irrompa e nos deixe ser o que temos de ser, subversivos no mais alto grau de nossa existência, frágil, incerta, improvável e imponderável!