
EIXO 02 – Transferência é amor – que amor é esse?
Maria Bernadette Soares de Sant´Ana Pitteri
Membro da EBP/AMP
Participante da Comissão de Orientação das XIII Jornadas da EBP-SP
Falar de transferência é falar de amor. Que amor é esse? Outro amor, amor diferente, novo amor? Freud diz haver, “desde sempre, uma suspensão no problema do amor, uma discórdia interna, não se sabe que duplicidade”[1].
Numa análise manifesta-se o curioso fenômeno da transferência, amor que, na situação analítica, nada tem a ver com as qualidades do analista, que “não tem nenhum motivo para orgulhar-se de tal ‘conquista’”[2].
Diante do amor de transferência seria insensato invocar a moral, a renúncia ou a sublimação das pulsões, “como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta” [3].
No Seminário 11, considerando a transferência produto da situação analítica, Lacan afirma que esta não poderia criar o fenômeno; para produzi-lo é preciso haver, fora da análise, possibilidades presentes na vida do sujeito às quais a transferência dará uma composição única. Todo analista conhece o fenômeno da transferência, mas procura em vão evitar o peso que a análise introduz: a ambivalência amor/ódio[4].
Embora a situação analítica seja uma situação anormal, o amor tal como ocorre na transferência é autêntico e se reveste do sujeito suposto saber.
No Seminário 8, Lacan explora os diálogos sobre o amor[5] em O banquete[6], de Platão. O problema do amor interessa por permitir compreender o que se passa na transferência.
Sócrates, segundo Lacan, está na origem “da mais longa transferência já conhecida pela história”, o que intriga, visto que os gregos valorizavam a beleza física e Sócrates era muito feio. Ora,
“O fato de que os próprios analistas […] não primam pela harmonia corporal é aquilo a que a feiura socrática dá seu mais nobre antecedente, ao mesmo tempo, aliás, em que nos recorda que isso não é, em absoluto, um obstáculo ao amor” […] “Em suma, a análise é a única práxis na qual o encanto é um inconveniente. Quebraria o encanto. Quem já ouviu falar num analista encantador?[7]
No Banquete, mitos[8] sobre o amor são contados pelos simposiarcas, o que permite articular o que se passa entre o par formado pelo amante e pelo amado, έραστής/έρώμενος:
“vocês verão aparecer claramente o amante como o sujeito do desejo – com todo o peso que tem para nós este termo, o desejo – e o amado como aquele que, nesse par, é o único a ter alguma coisa. […] A questão é saber se aquilo que ele possui tem relação, […] uma relação qualquer, com aquilo que ao outro, o sujeito do desejo, falta”.[9]
Esses termos não coincidem, e amar é ser presa dessa hiância, dessa discórdia. Quando o erastés, o amante, o sujeito da falta, substitui o erômenos, o objeto amado, produz-se a significação do amor. O amor como significante é uma metáfora, uma substituição.
A presença de Aristófanes no Banquete traz o cômico com o “mito das almas gêmeas”: de início os seres humanos eram completos (uma esfera com quatro braços, quatro pernas, duas cabeças), até se revoltarem contra Zeus, que ordena cortá-los ao meio como castigo. As metades errantes buscam sua metade e, quando se encontram, agarram-se num abraço até a morte. Zeus, apiedado, permite a Eros que lhes dê órgãos sexuais, para apaziguá-los e tornar o encontro possível.
O discurso de Agaton gera o questionamento socrático, desenvolve-se em torno do desejo e do amor; ele substitui o termo desejo por amor. Sócrates capta o momento no qual, na conjunção do desejo com seu objeto, surge a significação do “amor”: o desejo, enquanto falta, dirige-se ao amor em busca de uma completude imaginária.
Nesse ponto se interrompe o discurso de Sócrates, discurso da epistheme, do saber transparente a si mesmo, pois este não pode “prosseguir para além de um certo limite referente a tal objeto, […] quando este objeto é o amor”.[10]
Algo escapa à epistheme e, para ir mais além, Platão recorre ao mito[11]. Diotima entra em cena, Sócrates a faz contar o mito de Eros, que não é um deus, mas um filósofo, sempre em busca de algo, sempre desejante. Filho de Poros (recurso, expediente, astúcia) e Penia (pobreza, miséria, sem recursos), Eros é um híbrido; desprovido de tudo, como a mãe, mas cheio de recursos e astúcia, como o pai, para conseguir o que deseja. Penia não pôde entrar na casa onde se festejava o nascimento de Afrodite, de onde sai Poros embriagado, e, quando este adormece no jardim, Penia vê a ocasião de engravidar dele e parir o filho Eros. Amar é dar o que não se tem, diz Lacan.
“Se lhes trago, nesse sentido, a fórmula de que o amor é dar o que não se tem, nada existe aí de forçado, de lhes mostrar uma das minhas invencionices. É evidente que se trata disso mesmo, já que a pobre Penia (aporia), por definição e por estrutura, não tem nada a dar, senão sua falta, aporia, constitutiva. A expressão ‘dar o que não se tem’ encontra-se escrita, com todas as letras, no índice 202a do texto do Banquete”.[12]
Mas o Banquete não se esgota nos mitos e na dialética socrática. Os discursos são interrompidos por Alcibíades, que, bêbado, irrompe desarranjando a cena do simpósio, exigindo fazer o elogio do seu amor. Assusta-se com a presença de Sócrates, acusa-o de persegui-lo, além de observar que Sócrates escolheu deitar-se ao lado do mais belo dos simposiarcas, o poeta Agatão.
O bêbado Alcibíades acusa Sócrates de haver ignorado os vãos esforços que fazia, no tempo em que amava Sócrates, para torná-lo seu amante. E Alcibíades continua: aqueles que ouvem Sócrates ficam aturdidos e empolgados, encantados por suas palavras, não exatamente pelo que ele dizia, mas por ser ele a dizer. Sócrates se reveste com uma atitude de não saber, assim como as estátuas de silenos, muito feios, mas por dentro plenos de beleza e de sabedoria, agalma. Alcibíades constrói uma metáfora: as imagens de sátiros ou de silenos traziam em seu interior coisas preciosas, e Alcibíades compara Sócrates a esses objetos.
Mas Sócrates, sem se deixar enganar, afirma que, ao Alcibíades dizer que quer seu agalma, que quer seu “agathon” (como aparece no texto grego), o que Alcibíades quer é o Agatão, aquele que se deitava ao lado de Sócrates. O discurso de Alcibíades dirigido a Sócrates endereçava-se a Agatão, e o agalma que ele dizia estar no interior de Sócrates são as qualidades que o significante “agathón” carrega. A interpretação de Sócrates não é aleatória, pois, se Sócrates ama Agatão, Alcibíades o quer; ele quer aquilo que imagina que Sócrates queira: o desejo do homem é o desejo do outro.
A irrupção do personagem Alcibídades tem estreita relação com a questão do amor, e também com a transferência.
Na conclusão do IX Congrés de L´École Freudienene[13], Lacan afirma que as pessoas se curam da neurose e até da perversão, mas também diz nada saber do que acontece numa análise que produza tal cura, embora marque a importância do “sujeito suposto saber” – alguém que conhece o aparelhamento (truquage), o modo de curar uma neurose.
A suspeita de Lacan é de que, sendo o significante da ordem do sinthoma, o significante opera por intermédio do sinthoma, e a pergunta que surge refere-se a como comunicar esse vírus.
Pela via do “sujeito suposto saber” há alguma transmissão, a partir do “inconsciente estruturado como linguagem”, inconsciente transferencial. O sinthoma, no entanto, absolutamente singular, não é transmissível, e se a cura provém daí, pode-se pensar em lalíngua[14] enquanto elucubração de saber sobre a linguagem.
O que é do inconsciente transferencial pode ser transmitido, em contraste com a intransmissibilidade do inconsciente Real, se é que há transmissão possível em psicanálise, arremata Lacan.
[1] FREUD, S. “Observações sobre o amor de transferência”. In: Obras completas volume 10. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, p. 211.
[2] Idem, p. 213.
[3] Idem, Ibidem. p. 213.
[4] LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[5] LACAN, J. (1960/1961). O Seminário, livro 8: A transferência. Ed. Zahar, 1992, p. 21.
[6] PLATÃO (428/347 a.C.). “O banquete”. In: Diálogos. Abril Cultural, 1972.
[7] LACAN, J. (1960/1961). Op. cit., p. 21.
[8] Idem, p. 59. “Todo mito se relaciona com o inexplicável do real, e é sempre inexplicável que o que quer que seja responda ao desejo.”
[9] Idem, p. 42.
[10] Idem, p. 122.
[11] Idem, p. 123.
[12] Idem, p. 126.
[13] LACAN, J. “Conclusions”. In: Lettres E.F.P. nº 25. 1979, vol. 2, p. 219. Disponível em: https://ecole-lacanienne.net/wp-content/uploads/2023/04/LettresEFP-N25-La-Transmission-2.pdf.
[14] LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 188. “a linguagem é apenas aquilo que o discurso científico elabora para dar conta do que chamo lalíngua”.