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Paola Salinas (EBP/AMP)

O tabu da virgindade é abordado e justificado devido à hostilidade e ao desejo de vingança que o defloramento provocaria. Ao desenvolver correlações sobre o tema, Freud destaca a frigidez como aspecto importante na vida sexual da mulher, articulando ao Édipo e ao complexo de castração. Associa tal hostilidade, na base do tabu, à inveja do pênis e ao protesto de masculinidade.

A valorização da virgindade seria a extensão do direito de propriedade à mulher, incluindo seu passado, o que é natural e indiscutível para o homem da época; daí a incompreensibilidade do tabu presente nos povos primitivos, os quais, para evitar a hostilidade do defloramento, o fariam em rituais antes do casamento.

Tal valorização se associa à servidão sexual, dependência de uma pessoa com quem há envolvimento sexual, base do matrimônio, explicada em função da repressão sexual feminina, chegando ao sacrifício dos interesses pessoais.

Contudo, tal valorização também ocorre nos povos primitivos, ao ponto do defloramento ter se tornado tabu, proibição de cunho religioso frente à presença de um perigo, ainda que psicológico, segundo a definição freudiana.

Freud toma o horror à efusão de sangue e a angústia frente a todo ato primeiro, como possíveis motivos para o tabu. Contudo, destaca a importância do defloramento em relação à resistência sexual vencida e o fato de ocorrer apenas uma vez. Estamos diante de um acontecimento intenso e único, que tem o peso de um ato.

Este ato traz uma nova significação pelo furo no saber que engendra, presença de algo incompreensível e inquietante, por vezes tratado em rituais de passagem.

Crawley fala da abrangência do tabu em quase toda a vida sexual: “quase poderia se dizer que a mulher é um tabu em sua totalidade. Não somente em situações derivadas da sua vida sexual, menstruação, gravidez, parto e puerpério”2, exemplificando pela necessidade de afastamento das mulheres, em alguns povos, na época de caça, guerra ou colheita.

Verificamos nesse afastamento um temor fundamental à mulher. Esta ocupa o lugar de enigma, e algo disso persiste. A mulher encarna tal diferença em seu corpo.

Neste ponto, Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças: “cada indivíduo se diferencia dos demais por um tabu de isolamento pessoal que constitui as pequenas diferenças entre as pessoas, que quanto ao restante são semelhantes, e constituem a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles”3. Poderíamos hipotetizar a repulsa narcisista à mulher.

Embora Freud diga que o tabu com a mulher em geral não esclarece o tabu da virgindade, abre uma questão sobre o lugar do feminino.

Os motivos levantados não explicam o tabu, a intenção de negar ou evitar ao marido algo que seria inseparável do primeiro ato sexual, mesmo que dali surja uma ligação intensa da mulher com o marido.

A gênese do tabu tem uma ambivalência original, que podemos articular à alteridade que a mulher representa. A relação entre o primeiro coito e a frigidez, estaria de pleno acordo com o perigo psíquico que o defloramento traz à tona. O gozo, pelo avesso, a frigidez, marca um funcionamento pulsional outro, articulado à proibição frente à sexualidade feminina.

Freud destaca a ofensa narcísica que o coito pode assumir pela destruição do órgão (hímen) e pela perda do valor sexual da mulher dele decorrente. Com maior importância fala do poder da distribuição inicial da libido, a fixação intensa da libido em desejos sexuais infantis. Nas mulheres, a libido estaria ligada ao pai ou ao irmão, sendo o marido sempre um substituto.

Destaca a inveja do pênis anterior à fase da escolha do objeto amoroso, mais próxima do narcisismo primitivo do que do objeto de amor. Haveria, portanto, algo do narcisismo feminino em jogo nesta hostilidade, hipótese que podemos aprofundar.

__________________________ 1 FREUD, S. “O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918 [1917]). In: Edição Standard. Vol. XI, Imago: Rio de Janeiro. 1970. 2 _______. Op. Cit. P. 183. N.A.: Freud refere-se à Crawley (1902), Ploss and Bartels (1891), Frazer (1911) e Havelock Ellis [1913]. 3 _______. Op. Cit. P. 184.

APRESENTAÇÃO DAS XI JORNADAS DA EBP – SEÇÃO SÃO PAULO

 Ⱥ verdade e o gozo que não mente

Alessandra Sartorello Pecego
Membro da EBP e da AMP
Diretora Geral da EBP-SP
Imagem: Instagram @ilzehelgeland

 

A Diretoria se viu, mais uma vez, frente ao desafio da escolha do tema de uma Jornada. Como enlaçar o fio dessa Jornada ao nosso trabalho nesse biênio da diretoria e à semente lançada ao solo pelas questões da X Jornadas – Psicanálise em Ato.

Retomo que nossa proposta nos leva a investigar a abordagem do real no último ensino de Lacan, localizar os conceitos e operadores clínicos e epistêmicos, investigar o real e o corpo falante atrelado ao Gozo do Um.

Acrescento que as Jornadas Psicanálise em Ato puderam nos trazer questões primorosas quanto ao percurso de uma análise. Ainda reverbera, para mim, uma construção de Anna Aromi sobre o ato analítico. Anna não põe luz ao verdadeiro ato analítico que é a passagem de psicanalisante a psicanalista, e sim, ao ato analítico ligado ao consentimento do sujeito em momentos de entrada em análise e aos momentos de irrupção do inconsciente no transcorrer de um percurso analítico.

Clareia os vários momentos de entrada em análise em um percurso. Em um lampejo, em uma fresta de abertura e consentimento, temos o efeito de verdade que se desprende da fala, há um dizer e um resto dessa experiência de fala. Uma força motriz para testemunhar sobre sua verdade, via amor de transferência.

Transferência que opera ao longo de uma análise e conduz o sujeito ao esvaziamento do sentido, ao encontro com o que não mais se nomeia, não mais se articula, com o que não faz mais série e explicita a inerente aliança entre verdade e mentira nessa ficção.

Testemunhar sobre a verdade mentirosa é o que os relatos de Passe nos ensinam, e a partir disso cito Miller “(…) há relembranças. Mas nada atesta a autenticidade de algumas delas. Nenhuma é final. O chamado retorno do recalcado é sempre arrastado no fluxo do falasser, no qual a verdade se revela incessantemente mentirosa. No lugar do recalcado, a análise do falasser instala a verdade mentirosa que decorre do que Freud reconheceu como o recalque originário. Isso quer dizer que a verdade é intrinsecamente da mesma essência da mentira. O proton pseudos é também o falso último. O gozo, ou os gozos do corpo falante, porém, é aquilo que não mente”[1].

Nesse sentido, abordar a questão da verdade que percorre todo o ensino de Lacan, e suas mudanças de estatuto nos pareceu um caminho clínico precioso para elucidar esse conceito na clínica estrutural e na clínica do sinthoma. Temos aí uma indicação importante no que concerne à diferença de se analisar o sujeito do inconsciente e se analisar o falasser, no que toca a interpretação. Se na clínica estrutural, o sentido da interpretação está pautado na verdade, na clínica do sinthoma, o sentido da interpretação é o gozo. Mas, há uma articulação entre as duas, como nos indica Miller na apresentação do Congresso da AMP 2016, O inconsciente e o Corpo Falante: “Lacan não veio para apagar Freud, mas para prolongá-lo e os remanejamentos de seu ensino se fazem sem fissuras utilizando-se os recursos de uma topologia conceitual que garante a continuidade sem interditar a renovação”[2].

Se no início de uma análise a questão da verdade se coloca necessariamente e, ao final, depreende-se a verdade mentirosa, o estatuto da verdade segue sendo um orientador clínico. Como podemos problematizar esse orientador a partir do que avançamos em relação à clínica do real e do gozo? Há algo a ser atualizado ou renovado, para usar o termo de Miller, em relação à dimensão da verdade, a partir da nossa prática na clínica do falasser?

Esvaziar de sentido o inconsciente e chegar ao osso do gozo, é se deparar com o encontro faltoso entre linguagem e carne. Esse esvaziamento leva a uma inscrição no corpo de um gozo impossível de se desembaraçar e é preciso fazer com ele, é preciso inventar-se, e chegar à singularidade de um sinthoma e sua satisfação. Gozo, esse, que não mente.

Esses são alguns dos pontos e nuances que nos nortearam na nossa proposta de uma investigação clínica e da psicanálise em intensão.

E quanto a psicanálise em extensão? Como localizar a dimensão da verdade e do gozo na civilização? O que podemos extrair e ler desse momento atual de políticas de extremismos, de absolutismos e únicas verdades, de opiniões que se fecham ao debate, da política de cancelamentos, de fatos e fakes enquanto sinônimos. Tempos em que se curto circuita a retroação de S2 sobre S1, tempos de enxames de significantes mestres que se encapsulam e se viralizam. Estamos em tempos sem articulações possíveis, tempos em que “silenciar o outro não é censura, é proteger A Verdade”[3] – como nos diz Laurent Dupont no artigo Cultura do cancelamento: a verdade e o Um. Diria que tempos nefastos, que nos convoca como psicanalistas e que não poderíamos deixar de fora na nossa condução da construção de um tema de Jornada. Verdade e gozo são norteadores fundamentais para colocar em debate essa discussão.

Postas essas considerações, não poderíamos deixar de barrar a verdade na grafia do escrito de nossas Jornadas.

Desejo que possamos elucidar e avançar de maneira decidida em torno desses pontos epistêmicos, e sustentar uma discussão e um debate vivo e aberto para o novo.

 


[1] MILLER, J-A. O Inconsciente e o Corpo Falante. In: Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 32.
[2] MILLER, J-A. O Inconsciente e o Corpo Falante. In: Scilicet: O Corpo Falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016, p. 27.
[3] DUPONT, L. Cultura do cancelamento: a verdade e o Um. In: https://www.hebdo-blog.fr/cancel-culture-la-verite-et-le-un/ . Tradução livre.
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