Kátia Ribeiro Nadeau - Associada da CLIPP “Minha alma tem o peso da luz. Tem o…
#Conversa.com – A (des)conexão de Hilda Hilst: um furacão na poesia brasileira contemporânea – Entrevista com o poeta Claudio Daniel*
Por Fabiola Ramon
Pois pode ser.
Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.
Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O DESEJO.
Hilda Hilst, in ‘Do Desejo’ (1992, publicado pela Ed Globo, 2004)
Não por acaso Hilda Hilst (Jaú-SP, 1930- Campinas-SP, 2004) foi homenageada na última edição da FLIP, a famosa Feira de Literatura de Paraty (RJ). Poeta, ficcionista, cronista e dramaturga, Hilda escreveu seu nome na história da literatura e é considerada uma das maiores escritoras de língua portuguesa do século XX.
Uma mulher à frente de seu tempo, com uma linguagem inovadora e abrangente que rompeu com diversos limites no campo da escrita literária, Hilda produziu mais de quarenta títulos, entre poesia, teatro e ficção, e escreveu por quase 50 anos, recebendo importantes prêmios literários.
Muitos dos seus textos são atemporais, com um entrelaçamento entre a realidade e a fantasia, engendrando o desvelamento da fragilidade dos tecidos que bordam a condição humana, a partir de uma poética na qual toda a potência de Eros toma corpo na letra.
Seu sintoma com a escrita não está circunscrito apenas ao ato de escrever, ele transborda para uma questão particularmente importante para a escritora: de sua obra “ser lida”. Ao lançar o livro “O caderno rosa de Lori Lamby” (1990), um “livro pornográfico”, Hilda foi a público dizer que essa obra havia sido feita para ser lida.
Ser lida não trata de ser fácil ou palatável, mas de causar o Outro da linguagem, decifrá-lo e recifrá-lo, incessantemente. Ao empreender o trabalho de ser lida, ela incluiu em sua escrita os leitores, o mercado editorial, os escritores de sua geração, os críticos literários etc. Sem medo de ousar em sua invenção e reinvenção de seus modos de escrita, o produto de sua criação não faz simples apelo ao outro, como foi acusada por escritores conservadores da época que não alcançaram a extensão de sua escrita, mas serviu e continua servindo de matéria preciosa para o deleite, a fruição e a constatação perturbadora de que a escrita comporta em si uma erótica. Hilda deixou esse legado para a literatura brasileira de todos os tempos.
Ademais, Hilda não apenas escreveu sobre o amor e o sexo, ela deixou marcado e impresso, na página da história da literatura e no corpo dos seus textos, uma escrita de amor e sexo. Lá onde a relação sexual não existe e a escrita pode fazer suplência, Hilda faz, em ato, a letra copular, o significante trepar e o corpo de sua obra erotizar-se. Com a força e a potência de sua escrita, Hilda abalou e esgarçou a página, o livro, o corpo, a sexualidade, a política, a transcendência, o mundano, o sexo, o amor e a morte.
Sintética e precisa é a forma como Claudio Daniel, poeta de fino rigor estético e amante da invenção com a língua, “poematiza” a escritora: “Hilda, um furacão na poesia brasileira”.
Claudio Daniel foi entrevistado pelo Boletim # Cupid# sobre Hilda Hilst. A partir de sua intimidade com o texto da escritora e de sua própria relação visceral com a escrita, nos trouxe sobre o lugar do poeta, esse que, segundo suas palavras, com seu ato, “joga o dardo cada vez mais longe, para não se acomodar a uma única forma”. Nessa jogada, Hilda faz da des(conexão) matéria de sua causa. Com a palavra, o poeta Claúdio Daniel!
Fabiola Ramon: Na sua concepção, que tipo de conexão e desconexão há entre o amor e o sexo na escrita de Hilda Hilst?
Claudio Daniel: A poesia de Hilda Hilst, desde o seu livro de estreia, Presságio (1950), que a autora publicou com apenas 20 anos de idade, até o último, Cantares do sem nome e de partidas (1995), sempre girou em torno dos temas do amor, do sexo e da morte. Claro: não há novidade alguma nisso, grande parte da poesia ocidental trata das relações entre Eros e Thanatos, desde Safo e Alceu, na Grécia clássica, até os dias de hoje. O que surpreende, na poesia de HH, é a pluralidade de aspectos e abordagens do tema amoroso, que por vezes transcende a dimensão sexual para alcançar a metafísica: o Outro amoroso pode ser o companheiro, mas também um aspecto dela própria (o seu duplo), um personagem ficcional, ou símbolo de sua profunda solidão, sempre em busca de algo ou alguém inalcançável, o eterno ignorado e ainda a manifestação do divino. Outras vezes, o amor é simplesmente o Incomunicável, o Ausente, o Inexistente. A sexualidade, por sua vez, se é associada ao amor físico, também o ultrapassa, manifestando-se, inclusive, na escrita libidinosa: a poesia como ato erótico. Na poesia de HH, imperam a polissemia dos vocábulos, a incerteza, o deslizamento e incessante transformação dos sentidos do poema.
Fabiola Ramon: O que você poderia dizer sobre a escrita pornô (pornografia) de Hilda Hilst?
Claudio Daniel: É sobretudo uma escrita fescenina, ou seja, que faz a sátira do erótico e do pornográfico, como nos poemas de Bufólicas (1992), incorporando temas do cotidiano, misturados à fantasia (contos de fadas e relatos mitológicos ou lendários, por exemplo), a coloquialidade, a gíria e o palavrão, elementos antes ausentes em sua poesia “séria”, que alguns consideravam “hermética” ou “obscura”. Sem dúvida, é a partir de sua lírica fescenina que a obra de Hilda começou realmente a ser lida, a conquistar a atenção da crítica literária, da universidade, das grandes editoras e, sobretudo, do público. Ela própria admitia ter escrito O caderno rosa de Lori Lamby (1990) porque desejava ser lida, sair da condição de autora “maldita” e excluída do cânone literário por ser mulher, ter um comportamento irreverente para a época e praticar uma escrita densa, que não se enquadrava no cenário literário. Com a popularidade tardia, HH conseguiu ser lida e hoje está definitivamente incorporada na história da literatura brasileira.
Fabiola Ramon: Nos últimos anos verificamos no campo da cultura, das artes e das relações amorosas, principalmente virtuais, a estetização do obsceno, onde o objeto fetiche ganha a cena, sem velamento. Nesse ponto, você acha que Hilda Hilst antecipou em sua escrita um modo de gozo característico de uma época que estava por vir?
Claudio Daniel: Acredito que a dimensão erótica mais profunda da poesia de HH está em suas primeiras obras, em que a amor e o erotismo são abordados desde o self até o divino. Ela passou a trabalhar com a temática pornográfica para sair do ostracismo em que se encontrava, ampliar o seu público e, claro, renovar a linguagem, fazendo algo totalmente diferente em sua trajetória literária. Não creio que ela antecipou a estetização do obsceno, que já tem uma longa presença em nossa tradição literária, desde as cantigas de escárnio e mal-dizer do século XII até Gregório de Matos, Bocage e o nosso Glauco Mattoso.
Fabiola Ramon: Quando Hilda Hilst publica “O caderno rosa de Lori Lamby”, em 1990, já era uma escritora consagrada. Mesmo assim, causou polêmica e rejeição no meio literário. Escritores conservadores a atacaram, mas Hilda sustentou sua escrita, localizando-a como “um ato de agressão”, uma “ação vigorosa”, não apenas pelo conteúdo pornográfico, mas também pela forma de sua escrita. Você poderia comentar em que sentido a escrita de Hilda Hilst foi revolucionária e rompeu com a tradição no próprio modo de escrita?
Claudio Daniel: Hilda Hilst era lida e conhecida por um pequeno círculo de leitores; os seus livros eram publicados por editoras independentes, como a de Massao Ohno, e recusados por grandes editoras, como a Companhia das Letras (que curiosamente publicou a poesia completa de HH, em 2017, treze anos após o falecimento da autora). A publicação de suas obras “pornográficas” causou surpresa a certos leitores e críticos, que a acusaram de ter aderido a uma escrita “fácil”, “comercial” ou “popular” para “fazer sucesso”, abandonando a “seriedade” de sua lírica anterior. Claro que, por trás de tais acusações, há também o moralismo de quem não suporta o sexo e o palavrão na literatura; neste sentido, podemos falar, sim, numa reação conservadora. Sem dúvida, HH revolucionou a sua própria escrita, ampliando a temática, o vocabulário e as formas narrativas de seus poemas. Todo grande poeta, em minha opinião, almeja superar-se sempre, jogar o dardo cada vez mais longe, para não se acomodar a uma única forma. E HH foi um verdadeiro furacão na poesia brasileira contemporânea.
*Claudio Daniel é poeta, autor de Yumê (Ciência do Acidente, 1999), A Sombra do Leopardo (Azougue Editorial, 2001, prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira) Figuras Metálicas (Perspectiva, 2005), entre outros livros de poesia, tradução, ficção e ensaio . Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é também editor do blog Cantar a Pele de Lontra http://cantarapeledelontra.blogspot.com) e da revista eletrônica Zunái, Revista de Poesia e Debates (www.revistazunai.com). Foi colunista da revista CULT e curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo. Hoje, Claudio Daniel ministra cursos de poesia no Laboratório de Criação Poética, via Skype. E-mail de contato: claudio.dan@gmail.com
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.