Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
Uma falsa solidão
“E os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar”[1].
O tema de nossa IX jornada deu-me a oportunidade de resgatar, em minha memória de leitora, o prazer que foi a leitura do livro Cem Anos de Solidão, de García Marques[2], livro que se colocou, não sem insistência, para ser relido na solidão que cabe a todo leitor.
A solidão, no livro, já está marcada como tema central desde o título dado pelo autor. Sua narrativa vai se dar em torno da solidão social, que caracteriza o povoado de Macondo, “Pero si lo piensas con cuidado, verás que el libro que yo estoy escribiendo no es el libro de Macondo, sino el libro de la soledad”[3].
Falar da solidão para García Marques é falar da verdade humana, de sua essência, de uma solidão que requer um saber fazer com ela e assim atingir o seu oposto, a solidariedade, que para ele é o que torna possível o laço familiar, social e político.
Não tenho a pretensão, neste artigo, de dar consequência a toda riqueza do tema feito pelo autor em relação a esta solidão social no seu viés político, mas sim o de buscar tirar consequências desta solidão, que impede o laço com o outro, por ser uma falsa solidão, ainda que autêntica[4], pois é falsa apenas naquilo que oculta que o sujeito está acompanhado do objeto de seu fantasma.
São as falsas soluções neuróticas frente ao desejo do Outro, usando do isolamento, como forma de evitar entrar em contato com uma solidão inicial inerente a todo ser humano. Bassols vai trabalhar esta solidão inicial como estrutural, pertinente a todo sujeito da linguagem: é a solidão do ser no mundo, a solidão da falta-em-ser[5].
Também Goldemberg se refere a esta solidão inicial como uma solidão entre desamparo e defesa, que é distinta das solidões dos casos clínicos, da solidão de época e das épocas[6].
Esta falsa solidão é descrita em alguns personagens: Melquíades, José Arcádio Buendía e, principalmente, o Coronel Aureliano Buendía, que compreendem a solidão como isolamento físico nas suas relações com o outro.
É interessante também uma outra forma como García Marques apresenta a solidão: como uma solidão transmitida de geração a geração, solidão transgeracional, uma solidão repetição, em que não só os nomes dos personagens da família Buendía repetem-se de geração em geração, assim como se repete em cada um a incapacidade de solucionar, de dar outra resposta ao primeiro desejo, o da matriarca, que abre o início da saga familiar. Desejo este com a marca da culpa, por ser um desejo proibido, um desejo incestuoso e gerador de castigo. A matriarca Úrsula, está sempre à espera do advento, da realização deste castigo: o nascimento de um rebento com rabo de porco.
Esta maldição condena a cem anos de solidão, onde o amor não terá êxito em fazer laço, falha em abrir novos caminhos, restando então ser vivido como um amor que corrompe e destrói.
Portanto, não é do isolamento geográfico do povoado de Macondo que o autor apresenta como causa da solidão que acomete seus personagens, a causa está na impossibilidade do amor, na falta de solidariedade dos personagens.
E será por esta impossibilidade que Macedônio vai sofrer um processo de desaparição: o isolamento não permitiu ir além das individualidades próprias e atomizadas.
Desde Freud a solidão tem sua raiz no desamparo e isso marca para o homem o destino de ligar-se ao outro, como ser dependente um do outro. Porém, a solidão vivida como isolamento só faz acentuar a unidade imaginária de ser o único (le seul)[7].
Na solidão não há exclusão do Outro, mas separação, permanecendo uma fronteira com o Outro. No isolamento há a recusa da fronteira com o Outro. O isolamento pode existir para tentar evitar a solidão. É porque o Um e o Outro se opõem é que se evita o Outro. Há várias maneiras de se isolar[8], e é o que García Marques nos descreve na construção de seus personagens.
E, por último, há a solidão do artista, que assim como a solidão do analista, é uma verdadeira solidão: “no encontro com o real, há um saber fazer com a solidão”