Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
“Homens sem mulheres”
Trata-se de um livro que me foi apresentado para que eu pudesse melhor testemunhar a solidão da qual este homem sofria. Não se trata de homens literalmente sem mulheres, mas de homens que amaram e perderam uma mulher, ou que não ousaram fazer de uma mulher a causa do seu desejo. Suas figuras, no Japão de Haruki Murakami[1], são variadas, mas revelam uma particular sensibilidade ao inconsciente deste escritor cujas ficções revelam algo do real da não relação sexual na época do Outro que não existe, em que o gozo feminino não se atém às fronteiras entre homens e mulheres.
Seus contos surpreendem ao por em cena, para esses homens, o não-todo do gozo feminino e a impossibilidade de fazer existir A mulher, e mesmo a dificuldade de fazer de uma mulher o seu sintoma, trazendo o melhor problema, ou solução, que cada um pôde obter a partir dos impasses do encontro com o Outro sexo.
Um ator perde sua mulher e se aproxima daquele que supõe ter sido seu último amante para saber porque ela precisava ter outro homem em sua vida. Havia um ponto cego na sua relação com a mulher, algo dentro dela que ele não podia entender. Ele mesmo gosta de ser outra pessoa quando está atuando, mas o eu para o qual retorna nunca é o mesmo que deixou para trás. Não só o desejo do Outro permanece enigmático, mas seu próprio eu torna-se outro para ele.
Um cirurgião plástico bem-sucedido, celibatário convicto, só sai com mulheres comprometidas, com as quais não se compromete. Um dia, inesperadamente, se apaixona. Perde a vontade de sair com as outras, de comer, de trabalhar. Ele descobre seu ódio e sua vontade de destruir tudo. Essa mulher deixou o marido e o filho para ir embora com outro, mas não por ele. As mulheres têm um “órgão independente” para mentir e ele usou esse órgão para se apaixonar, leva-lo às alturas e ao abismo. O gozo feminino, opaco, para além da medida fálica que ele sabia usar tão bem, é encarnado em uma mulher e logo, nele mesmo, e o leva ao pior.
Um representante comercial, ao voltar de uma viagem, encontra sua mulher com seu melhor amigo. Abaixa a cabeça e vai embora, mas só encontra, pela frente, isolamento e abandono. Seu corpo vai perdendo consistência, enquanto o gozo o invade sob a forma de cobras que o espreitam na vizinhança. O que é recusado no simbólico retorna no real. Ele terá que reconhecer seu coração ferido e subjetivar a dor para recuperar seu corpo.
A voz de um homem desconhecido anuncia ao autor que sua mulher cometeu suicídio: era uma antiga namorada, a terceira, com quem havia saído, que tinha se matado. Nela perdia a menina de 14 anos que amara, assim como sua vitalidade adolescente. Um buraco profundo se abria entre ele e o viúvo que lhe dava aquela notícia. Uma mulher profundamente amada vai embora levada por “marinheiros”, ou tira sua própria vida. A solidão é como uma mancha de vinho em um tapete pastel. Pode desbotar, mas permanece. Pode-se encontrar outra mulher, mas sua perda está no horizonte. A estátua de um unicórnio é o símbolo da solidão dos homens sem mulheres.
Um homem em reclusão domiciliar tem como único contato uma enfermeira que vem vê-lo regularmente. Ela lhe traz comida, faz sexo com ele e lhe conta histórias que, estas, vivificam seus corpos. Ele aguenta bem o isolamento, mas não suporta a ideia de ser privado das histórias de Scheherazade. Ele havia encontrado, com ela, uma outra satisfação.
Em um último e surpreendente conto, o personagem acorda para descobrir que passara por uma metamorfose e se tornara Gregor Samsa. Nu, desprotegido, sem carapaça e sem ferrões. Uma mulher toca a campainha na casa onde se encontra sozinho, ela veio reparar a fechadura de uma porta. Era uma mulher corcunda e seu caminhar capenga lembra-lhe algo, despertando sua simpatia e logo, a ereção de todo o seu corpo gelado, aquecendo-o. Numa inusitada ficção de metamorfose ao avesso, Murakami nos aponta o encontro, contingente, no parceiro, dos sintomas que marcam o exilio, para cada ser falante, da relação sexual[2].
Se Lacan pôde dizer que o gozo que se tem de uma mulher a divide, tornando-a parceira de sua solidão[3], o que dizer dessas figuras da solidão masculina? Há aqueles que perderam a mulher para outro, seja com resignação ou revolta, seja devastados pelo Outro gozo, “órgão independente” da mulher. O isolamento ora aparece na figura do homem abandonado, sem desejo, ora daquele que não conseguiu ser aquilo que falta ao Outro, ou daquele que deu tudo de si para fazer existir A mulher, mas não soube fazer de uma mulher seu sintoma.
Lacan disse que uma mulher é para todo homem um sintoma, enquanto o homem seria para uma mulher uma devastação[4], mas vemos aqui, justamente, uma inversão. Se “Homens sem mulheres” poderia nos fazer pensar no isolamento de um sujeito fechado em sua bolha narcísica, o que vemos nessas figuras de ficção construídas por Murakami é a maneira como o encontro com o Outro sexo pode ser devastador para um homem, que se refugia no isolamento fantasmático dos homens sem mulheres. E o que abre um horizonte humano é justamente o encontro, em uma parceira, de um traço que lhe permite fazer de uma mulher a causa do seu desejo. Ou a subjetivação do objeto perdido permite a um homem recuperar seu corpo.
Com Philippe La Sagna[5] podemos distinguir o isolamento, do registro da alienação, ou da fantasia, a tratar, da solidão, articulada à separação, ou ao sinthoma, a construir. Na psicanálise, trata-se de entrar em relação com seu inconsciente, com o que se tem de mais próprio, para aceder às coisas das quais se é separado e fabricar uma nova solidão, uma base de operação para encontrar os outros, saindo do isolamento. A descoberta de que o Outro não existe não retira do sujeito o gosto pelo desejo do Outro, ao contrário. Não há acesso ao Outro, mas aos efeitos do inconsciente como furo, o que dá a ideia de uma verdadeira solidão, com satisfação.