Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
#Freud e a vida amorosa – A “vida amorosa” e o caso do Homem dos Lobos
Por André Antunes da Costa
“Contribuições à psicologia do amor” é sob este título que Freud agrupa três textos escritos com um intervalo de oito anos entre eles. Para quem ainda não os conhece, eu os apresento: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem” (1910), “Sobre a mais comum depreciação na vida amorosa” (1912), e “O tabu da virgindade” (1918). Em 1914 Freud redige o texto “História de uma neurose infantil – o Homem dos Lobos” que será publicado apenas em 1918, portanto, os textos sobre a psicologia do amor são contemporâneos ao famoso caso clínico. Pretendo extrair uma particularidade das “Contribuições à psicologia do amor” e compará-la com o caso clínico em questão.
Liebenslebens
O mesmo termo em alemão Liebenslebens é traduzido ora por “vida amorosa”, como no título do artigo de 1912, ou apenas por “do amor”, como no título que reúne os três textos. Não se trata aqui de comentar a escolha da tradução, gostaria simplesmente de sublinhar uma diferença entre “psicologia da vida amorosa” e “psicologia do amor” tal como o fez Jean Pierre Deffieux[1]. A “vida amorosa” em Freud abrange o estudo sobre o amor, claro, mas não se reduz a isso, visto que ela contempla igualmente o desejo e o gozo. Segundo J-A. Miller[2], o termo Liebe em alemão, recobre ao mesmo tempo amor e desejo, no entanto, os textos de Freud apontam para uma separação entre as condições de amor e as condições do desejo sexual.
A expressão “psicologia da vida amorosa” tem um sentido preciso em Freud, que não é o da compreensão dos sentimentos, tal como poderíamos supor num primeiro momento. Freud utiliza o termo psicologia em sua acepção do século XVIII, ou seja, um estudo científico dos fenômenos da alma. Se a tarefa de escrever sobre as condições amorosas foram deixadas aos poetas por serem mais sensíveis para capturar os movimentos psíquicos ocultos em outras pessoas, Freud nota que para produzir o prazer estético e intelectual visado pelas obras de arte é necessário alterar o material da realidade, alteração esta que chamamos de “licença poética”. Já o psicanalista, com uma mão mais pesada e não tendo como alvo a obtenção do prazer estético, pode submeter a vida amorosa a uma exploração científica.
O complexo de Édipo e a vida amorosa
Freud ao acumular algumas observações sobre a vida amorosa dos homens destaca duas condições frequentemente encontradas: a condição de “um terceiro prejudicado” e a do “amor à prostituta”. A primeira condição consiste em que o interesse deste tipo de homem nunca toma por objeto amoroso uma mulher que esteja livre, apenas as que são comprometidas. A segunda condição que frequentemente se associa à primeira consiste em que a mulher casta e insuspeita não exerce o fascínio que a transforma em objeto amoroso, mas apenas a mulher com alguma má fama ou de quem se tem certa incerteza com relação a fidelidade.
Freud sublinha que frequentemente tais condições não ocorrem apenas uma vez na vida amorosa dos indivíduos mas que tais condições para o apaixonamento se repetem, com as mesmas particularidades “cada uma a exata cópia da outra (…) formando uma longa série”[3].
Estas condições de amor e de desejo admitem um esclarecimento simples segundo Freud e a explicação, mais refinada do que trago aqui, gira em torno do complexo de Édipo. A fixação libidinal a mãe, pura e casta, condiciona seu desejo por mulheres de reputação duvidosa enquanto o terceiro prejudicado é, em última instância o pai. O que gostaria de sublinhar é que “a vida amorosa submetida a estrutura simbólica edipiana torna o sujeito escravo de um certo destino de escolha amorosa e o inscreve em um automatismo de repetição”[4]. Freud aborda nesses textos sobre a vida amorosa sobretudo a vertente edipiana que condiciona o objeto de amor e de desejo. No entanto, para a psicanálise, o Édipo não é a única vertente que condiciona a vida amorosa. Por essa razão recorro ao caso do Homem dos Lobos, para mostrar que nem todas as condições de amor encontradas na obra de Freud dizem respeito à estrutura da lógica simbólica edipiana.
O Homem dos Lobos, vida amorosa fixada na cena primária.
A vida amorosa do paciente neste caso permanecerá vinculada à cena primária, quando o paciente assiste com um ano e meio de idade a um coito a tergo entre seus pais, posição sexual natural do reino animal em que a fêmea é colocada para acasalar com o macho. Não importa aqui se a cena é fantasiada ou vivida, de qualquer modo ela marca para este sujeito o encontro com o sexual e fixa um modo de gozo que o sujeito reencontrará por diversas vezes em sua vida. Freud “estabelece uma importante ligação entre a cena primária e a posterior compulsão amorosa que se tornou tão decisiva para o destino do paciente, e além disso introduz uma condição de amor que esclarece tal compulsão”[5]. Temos aqui as coordenadas da escolha de objeto e sua compulsão amorosa ligada não às coordenadas simbólicas edipianas, mas a uma cena traumática. A escolha de objeto do homem dos lobos permanecerá fixada nessa imagem onde cenas análogas desencadearão a cada vez o mesmo ímpeto desejante; é assim com Groucha em sua infância, quando o paciente a vê ajoelhada esfregando o chão na mesma posição que a mãe estaria na cena primitiva, com Matrona na adolescência, com uma outra jovem, etc.
Deffieux, J-P nos mostra no texto já citado que lá onde, na neurose, o simbólico se enoda ao imaginário para cernir o real do trauma sexual, no sujeito psicótico apenas o registo imaginário está empenhado nesta tarefa. Esta seria a razão pela qual no homem dos lobos o que aparece em sua forma pura é o enodoamento imaginário – real das condições de amor[6]. Tomar o caso do homem dos lobos como uma psicose poderia nos conduzir a diferenciar neurose e psicose a partir de algumas características gerais com relação a vida amorosa. No entanto concluiremos sem a intenção de aprofundar esta distinção e sim ressaltando as condições singulares, não edipianas da vida amorosa inclusive na neurose.
É a partir do encontro com o traumático, com o sexual, que podemos conceber certas modalidades de gozo. Para tratar esse gozo, o neurótico recorre neste ponto ao fantasma enodando o imaginário, simbólico e real. O homem dos lobos não pode realizar esta operação, ele não pode enodar imaginário simbólico e real, para constituir suas condições de amor singulares. Ele permaneceu fixado e paralisado na repetição estrita da mesma cena – o que vemos com frequência na psicose.
Assim, se de um lado temos as condições de amor que aparecem ligadas à estrutura simbólica do édipo – condições gerais –por outro existem as condições singulares, ligadas ao encontro primordial com o sexual, e que se sustentam no fantasma fundamental.
Uma análise produz novos laços com o outro. Poder amar se desfazendo de algumas condições edipianas fundamentais e afrouxando a fixação do gozo encapsulada no fantasma, pode conduzir a um novo amor no final de uma análise. Esse novo amor permite tomar o outro por sua singularidade, e não apenas capturá-lo nas ficções que animam a neurose.