Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
Dona Flor, a solidão entre dois[i]
Fernanda Otoni Brisset
(EBP/AMP)
Florípedes Vargas fez de “dois mais um” seu sintoma de vida amorosa.
É o que ensina o romance, de Jorge Amado, “Dona Flor e seus dois maridos”, cuja ousadia está em bem dizer como o tumulto da solidão do gozo de uma mulher pode se arranjar com o impossível de um casal, após dois casamentos.
O primeiro lhe chegou como quem chega do bar[ii]. Com o boêmio Vadinho viveu uma paixão arrebatadora. Do erotismo que a fazia subir pelas paredes ao desfiladeiro do ciúme enlouquecedor, viveu uma paixão sem limites tomada pela força de um comichão fora da lei. Quando ele morreu vestido de baiana, numa quarta feira de cinzas, restou só, viúva, num vivo desassossego.
O segundo lhe chegou como quem vêm do florista[iii]. Era o farmacêutico Teodoro, com quem logo se casou. Conheceu com ele uma rotina segura e confortável, na paz cotidiana de um casal. Apreciava o que vivia, mas ainda latejava de suas entranhas uma inquietude sem paz, sem par.
Até que um dia, como quem chega do nada[iv], o espírito do falecido apareceu. Ele se deitou na sua cama, entre ela e o marido. E lhe chama de mulher[v]. Entre dois, sucumbiu, só, a um gozo que não sabe dizer seu nome. E, antes que dissesse não[vi], ela recorreu ao candomblé e o amarrou no tetraedro de seu leito, experimentando a conciliação impossível entre o fogo e a calmaria, a aventura e a segurança, o desatino e a gentileza, o gozo e o outro. Alojou tal arranjo em seu hábito conjugal, conectando o real de um gozo, mudo e sem lei, à rotina metódica e disciplinada da vida cotidiana.
Seu sintoma – Dona Flor e seus dois maridos – sua solução!
Sua fama ganha o mundo. De jeito simples e inequívoco ensina que a força material que perturba o corpo de uma mulher só pode conhecer algum sossego ao conjugar o infinito do gozo à uma maneira de amar que o leve em conta, na forma do “caráter automático do amor”[vii].
A solidão, parceira de uma mulher, não se engana: “o gozo do homem e o da mulher, não se conjugam organicamente”[viii]. Quando o gozo entra em cena, a união entre um homem e uma mulher fracassa. Entre um e outro, esbarra-se num obstáculo, esbarra-se no “osso”. “Há um osso faltante”, dirá Lacan, que é próprio do desejo e seu funcionamento[ix].
Desse vácuo, que não se faz recobrir por nada, ali onde há um osso faltante, uma mulher terá que inventar uma forma de amor que valha a pena, que faça suplência a relação sexual que não existe.
E assim aconteceu no sertão da Bahia! Entre uma rotina confortável e um gozo sem sossego, uma fresta se abriu e deu passagem a Vadinho – uma imagem, um artifício conector – que se instalou entre os dois. Uma presença vadia que invade e se evade, por um triz, no compasso da válvula pulsante do gozo feminino, no interior da vidinha de um casal.
Dona Flor transmite como o gozo feminino, tout seul, pôde encontrar entre dois maridos uma satisfação ímpar. Ao grampear uma imagem a uma rotina conseguiu aceder a um gozo sem igual, enquanto o fez parecer normal.
Jorge, o Amado, pouco antes de Lacan, parecia já intuir que “mesmo que se satisfaça a exigência de amor, o gozo que se tem da mulher a divide, fazendo-a parceira de sua solidão, enquanto a união permanece na soleira”[x].
Dona Flor parece saber vivê-lo ao bem dizer: – Enfim sós!