Kátia Ribeiro Nadeau - Associada da CLIPP “Minha alma tem o peso da luz. Tem o…
#Cinema conexões e desconexões – Deixe a luz do sol entrar: o que dos desencontros amorosos não cessa de se escrever?
Por Janaina de Paula Costa Veríssimo
“[…] o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão.”
(Roland Barthes)
Deixe a luz do sol entrar já revela um paradoxo de saída, ao ser lançado como uma “comédia romântica”. O que, basicamente, fundamenta o argumento de um longa desse subgênero cinematográfico é que dois personagens se conheçam, não se envolvam amorosamente por certo tempo, reencontrem-se, após diversas cenas cômicas, e descubram que foram feitos um para o outro. Existem variáveis possíveis na escrita do roteiro e o final feliz não é condição sine qua non.
No entanto, o longa de Claire Denis, que contou com Christine Angot, figura já bastante cara no meio psicanalítico, como roteirista, revela elementos nada cômicos. Pois se os reiterados desencontros de uma mulher em sua infinita demanda de amor relançam o espectador em algum riso, ele pode ser, no mínimo, um riso que comporta desconforto.
A sinopse nos indica que Isabelle é mãe, divorciada, parisiense, uma artista plástica de sucesso que se vê às voltas com os seus insucessos no amor. Ela se revela infortunada em seus relacionamentos, mas segue em busca do parceiro ideal. Trata-se de uma bela mulher que demanda, além de um novo, um verdadeiro amor.
O longa não se constitui exatamente em uma adaptação do precioso Fragmentos de um discurso amoroso, de Roland Barthes, mas uma sutil inspiração pode ser lida em suas entrelinhas. Em uma entrevista de Juliette Binoche[1], ela diz que a própria Claire afirma que o filme tem um “perfume” de Barthes. Binoche, aliás, está brilhante na pele de Isabelle, sua performance realmente ilumina o filme e captura o espectador.
Comecemos por alguns fragmentos:
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“ABISMAR-SE. Lufada de aniquilamento que atinge o sujeito apaixonado de desespero […]”[2]
Assistimos a uma mulher abismada, em seu ponto de desespero e não-lugar, diante de uma demanda desenfreada de amor. Ela se endereça, ora para um banqueiro estúpido ou para um jovem ator narcisista, ora para o ex-marido e, ainda, para um desconhecido, com quem dança a belíssima At last, na voz de Etta James. Mas na contramão da canção[3], sua tranquilidade dura pouco e ela se vê em uma série que parece não ter fim, e que a coloca diante da solidão e da angústia.
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“ANGÚSTIA. O sujeito apaixonado […] se deixa levar pelo medo […] de um abandono, de uma reviravolta – sentimento que ele exprime sob o nome de angústia.”[4]
A mulher cai abandonada. O roteiro do filme gira, precisamente, em torno dos desencontros amorosos de Isabelle. Mas o que pode fundar o amor senão o encontro? O que faz fracassar o encontro, além do imperativo que circunda e orienta essa mulher? Há um ideal: o verdadeiro amor, um amor que se torna impossível.
Dos desencontros, não cessa de se escrever a impossibilidade e Isabelle paga por isso com o alto preço da angústia. Há um insuportável desse lugar que, paradoxalmente, ela segue ocupando. Um gozo paradoxal e insuportável.
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“INSUPORTÁVEL. O sentimento de um acúmulo de sofrimentos amorosos explode neste grito: “Isso não pode continuar.”
Ela tropeça nos desencontros e se vê às voltas com as botas pretas de cano alto atadas ao corpo. Na solidão de seu exílio particular, tenta impetuosamente retirá-las e arremessá-las longe após, mais uma vez, fracassar no encontro.
Durante todo o filme, o que se recolhe é algo que poderíamos aproximar da ideia de uma foraclusão do acaso; Isabelle coloca-se incessantemente em um enredo dramático. Ela se lança na necessidade de encontrar um verdadeiro amor, enquanto não abre espaço para o contingente. Trava, então, uma luta feroz, na qual o campo da contingência tem como grande inimiga a necessidade. Ela precisa de um amor de verdade.
Precisamente, o que dá contorno à histérica é a divisão que se evidencia pelo par antinômico desejo e gozo. “De um lado, a histérica recusa ser a mulher; do outro, porém, é à mulher que ela se refere”.[5] Na histeria, a mulher é, com efeito, o que ela não sabe ser. Por esse motivo, Dora interroga a Sra. K. sobre a sexualidade feminina. O que está em jogo para ela, Dora, é a pergunta sobre como proceder para que um homem goze. A histérica aposta que a mulher comporta esse saber.
“Essa distância entre a histérica e a mulher é a razão do drama da ruptura. O homem a deixa […], ou, ao contrário, é ela que o deixa”[6], perpetuando, assim, o desejo insatisfeito e a errância amorosa.
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“ERRÂNCIA. […] o sujeito […] compreende então que está destinado a errar até a morte, de amor em amor.”[7]
“Para uma mulher, um homem é uma devastação […].”[8] Isabelle se vê devastada diante daquilo que os homens lhe dizem. A devastação do desejo também irrompe diante daqueles que fecham a boca e lhe ferem por nada dizerem. Ela se sente privada da palavra de amor que selaria o encontro.
O discurso amoroso intenta “explicar as versões dos amantes para a causa enigmática disso que os enlaça e sustentar seu futuro. Enquanto tal conversa durar, dura o amor.”[9] Em uma cena bastante emblemática, aquela mulher, não sem angústia, insiste na duração de uma conversa. Ela posiciona a mão na maçaneta interna do carro, ensaiando abri-la, mas só abandona o veículo quando o amante aceita o convite para subirem juntos até o seu apartamento. Não há qualquer sinal de laço, nem de futuro. Fazem amor, mas não sustentam o encontro.
“Qual é o real que assim insiste? Não haveria, no cerne de uma tal insistência, o real da duração de um não?”[10] Haveria na busca obstinada de Isabelle, uma recusa do encontro? O que dos desencontros amorosos se escreve, que não a insatisfação, elevada à sua máxima potência?
O amor é aquilo que inevitavelmente fracassa e exige invenção, novas declarações, para fazer ressurgir a parceria. Sem amor, torna-se impossível o trabalho que “move os amantes, em termos de desejo e gozo”[11] e sua dissimetria.
O que faz de uma mulher um sintoma para um homem? Certamente, a contingência de um real em jogo que mobiliza o encontro. “É preciso, então, que um encontro com o real, de um modo ou de outro, se produza.”[12]
O amor engendra uma originalidade por ser posto em causa, a cada momento, em função do saber inconsciente que o sustenta. Assim, para Lacan, “fato, é que, se eu amo, eu quero saber. E, em particular, quero saber o que advirá do encontro.”[13]
Os amantes se interessam pelo tema da duração, por um saber que gira em torno da seguinte questão: o que sustenta o amor? “[…] diante do encontro, não se espera mais do que um contorno para o sentido da vida, vivido, se possível, com a alegria da surpresa.” – sim, as surpresas do amor, advindas do encontro! Trata-se de viabilizar uma aposta, um saber fazer com aquilo que produz surpresa, com o que atravessa o real dos dias, não sem avançar em direção a uma invenção cotidiana.
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E do que exatamente Isabelle parece não querer saber?
Um penúltimo verbete:
“MAGIA. Consultas mágicas, pequenos ritos secretos e ações de graça não estão ausentes da vida do sujeito apaixonado, qualquer que seja sua cultura.”[14]
Isabelle se dirige a uma cômica figura, espécie de vidente, guru, encarnado pelo genial Gérard Depardieu, que não hesita em recomendar-lhe: “Esteja aberta”.
Talvez o cômico, possa advir de uma virada que faça corte na infinitização do gozo, lá onde a relação sexual não cessa de não se escrever, pois “só amor permite ao gozo condescender ao desejo”,[15] aprendemos com Lacan.
Uma coisa é fato: cada um tem sua responsabilidade naquilo que lhe ocorre, e não seria diferente no acontecimento que é o amor. “Com efeito, não é a mesma coisa que estar aberto ou fechado para o encontro. Se alguma coisa como isso acontece, é preciso que, neste momento, eu queira alguma coisa e que uma porta se tenha aberto.”[16]
O guru segue certeiro: “talvez você já esteja cansada de tanta desconexão”. Ele convida Isabelle a um salto: da estafante missão “procura-se um verdadeiro amor” ao consentimento com a contingência.
Deixe a luz do sol e a contingência entrarem. Quando elas batem à porta, alguns raios solares já podem estar invadindo a casa, pelas frestas das janelas uma luminosidade furta-cor se espalha. As cortinas balançam, pode haver vento, assim a vida pulsa.
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Por fim, trata-se de:
“COMPREENDER: ‘Quero compreender (o que me acontece!)’
Ao sair do cinema, sozinho, remoendo o meu problema amoroso, que o filme não pudera me fazer esquecer, solto esse grito estranho: não: que isso termine!”[17]
Eis aqui, reiterada, a possibilidade de uma virada cômica, rir da própria novela edípica e do que ela comporta de resposta fantasmática frente ao Outro. Um querer saber sobre o seu sintoma abriria vias para um novo modo de satisfação? “A experiência de uma análise poderia produzir para o falasser algo da ordem de um feliz encontro?”[18] Quanto a Isabelle, de nada podemos nos certificar, apenas que ela sorri diante das palavras do guru. Aos analistas, cabe a aposta decidida na transferência, fundamento bastante atual, em tempos de des(conexões) do amor.