Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
A solidão de um ato
Por Patricia Badari
EBP/AMP
Era uma vez… Era uma vez… Era uma vez… Durante mil e uma noites. Assim, um reino da lenda persa, saiu de sua maldição. Aquela que poderia ter sido mais uma esposa a ser morta após a noite de núpcias, toma a palavra e o rei Shariar deixa-se iludir; se encanta com as histórias de Sherazade, essa que toca algo da causa de seu desejo e lhe abre a possibilidade de escolher uma outra saída para si e para seu reino.
E o jovem rapaz, personagem do filme Shéhérazade[1], irá em direção ao destino muitas vezes anunciado, amaldiçoado e selado para os jovens das periferias das cidades ou escolherá outra saída, mesmo que precária e/ou temporária?
O filme inicia-se com um jovem saindo da prisão. A mãe, envolta com suas próprias impossibilidades, não pôde estar ali para recebê-lo e um abrigo é o que lhe é ofertado pela assistente social. Ele foge imediatamente e sai pelas ruas da periferia de Marselha, lugar dos imigrantes que ali chegaram e onde cresceu – sua referência para tentar encontrar um lugar, um ponto de apoio.
O chefe da turma de amigos de outrora, também, não poderá acolhê-lo, pois levaria a polícia até eles. O melhor amigo, em sua precariedade, tentará. Leva-o para fumar haxixe e para escolher uma das meninas adolescentes das ruas para transar, já que estava saindo da prisão.
E é, justamente, nestas ruas da periferia que encontra e elege seu ponto de apoio – Shéhérazade, jovem garota que se prostitui e que em um tempo anterior já havia fisgado algo da causa do desejo deste jovem. Ela é “dura na queda”, mas “não-toda”. Com suas palavras e histórias por “mil e uma noites”, lhe indica um caminho para enlaçar a pulsão e a identificação.
Cafetão é uma posição que este jovem rapaz inventa para tentar cifrar a relação sexual, que não existe; para circunscrever algo do real ao qual é confrontado. Um semblante fálico do qual se serve, ali onde o vazio da inexistência do Outro se faz presente. Com este semblante se virará nas ruas, terá um lugar perante o grupo de velhos amigos e lhe servirá para reconfigurar seu gozo e servir-se desta menina-mulher. Mas não bastará para sempre.
Um novo impasse surge. Seu melhor amigo quer transar com Shéhérazade e ela não consente. E ele, enquanto cafetão, protegerá sua puta? Uma puta tem o direito de aceitar ou não alguns clientes. Ela é uma prostituta para ele? Ou mulher-menina sintoma? Ela o convoca enquanto homem e não como cafetão? O que sou para você? Ele insistirá no rebaixamento do valor erótico do que roça o seu desejo?
Este jovem titubeia, nem cafetão, nem menino-homem para ela – procrastina sua decisão e o estupro é consumado. E agora meu jovem rapaz?
Na exigência por uma decisão, insiste na saída fálica. Do lugar de cafetão desrespeitado e de macho ferido faz um ato tresloucado: atira no amigo que estuprou sua garota. Mas, se cafetão e macho emolduram o que se vê, vale dizer que são apenas duas das variedades da representação, que será sempre parcial. Novamente algo que diz de seu encontro com o sexo, retira seu desejo da calmaria e lhe exige um mais além das representações que eram dadas. Um encontro com o real é sempre passível de existir e a cada vez é preciso saber fazer com ele.
Haverá outra significação possível? Um S1 singular poderá advir e lhe deixar aberta a via do desejo? Ele testemunhará que foi um estupro ou seguirá no pacto silencioso com a pulsão de morte, como tantos outros jovens das periferias das cidades, aos quais muitas vezes só resta irem em direção à morte precocemente?
Sua mãe demanda seu silêncio, que tudo continue como sempre esteve. Estas são as regras de sobrevivência. No entanto, ele sairá do lugar de falo imaginário da mãe. Mãe e puta são significantes[2] que podem se equivaler ou serem disjuntos, mas tanto um quanto outro não respondem ao impasse sobre como gozar de uma mulher. Não se trata de salvar a mãe e tampouco salvar uma mulher. “(…) para o homem, a menos que haja castração, quer dizer, alguma coisa que diga não à função fálica, não há nenhuma chance de que ele goze do corpo da mulher, ou dito de outro modo, de que ele faça amor”[3].
A solidão de um ato lhe é requerida. O ato da palavra, onde um sujeito pode advir. E ele o faz. Acede à sua própria palavra que pode lhe servir como um ponto de apoio e orientação singular para uma posição de desejo, a partir da qual poderá bascular suas escolhas.
Ele testemunha que foi um estupro e se responsabiliza pelas consequências que daí advém. Vai preso novamente, pois atirou em uma pessoa, o amigo estuprador.
No entanto, este rapaz, com seu ato de “palavra de amor” deixou entrever “um nome próprio ao a”[4], algo do objeto a encontrado naquela garota – a causa de seu desejo.
Zach, Zachary é o nome deste jovem-menino-homem, que por ora pôde dar um outro destino à maldição que assolava sua vida. Um sopro de vida. A solidão de um ato “que alivia da vida, sem aliviar de viver[5].
Zachary seguirá com sua solidão subjetiva, mas não sem o laço com esta também menina- garota- mulher Shéhérazade!
Se na lenda persa um homem e um povo pôde ter outro destino, por que não o falasser? Eis a aposta! À cada um, seu era uma vez. Uma existência com nome e com um discurso. Ficções, semblantes, objeto a.