Por Niraldo de Oliveira Santos EBP/AMP “Alguns sendo singulares, se ajuntam, e podem ser colocados…
A não-solidão de Bolsonaro
Ariel Bogochvol
(EBP/AMP)
Em culto evangélico realizado em 21 de julho na Igreja Sara Nossa Terra, Jair Bolsonaro, chamado para discursar, disse que não sentia a chamada “solidão do poder”, sensação descrita por governantes no exercício de suas funções. Dirigindo-se à plateia de fiéis afirmou: “ouvi dos que me antecederam que logo nas primeiras semanas que assumiram o cargo começaram sentir a solidão no poder”. Diferente dos outros, o exercício do poder não suscitava, em Bolsonaro, solidão.
O presidente trouxe seu testemunho e, de forma involuntária, uma contribuição ao tema do encontro – a solidão, especificamente a solidão política ou do político. Fez um breve relato da sua experiência no poder que exerce há 8 meses. Falou de seu caso.
Bolsonaro é, sem dúvida, um caso político: ultradireitista, autoritário, nacionalista, trumpista, militarista, religioso, familiarista, conservador, liberal, reacionário, carismático, líder de massas, mito. A tomada do poder pelos grupos e partidos que se aglutinaram em torno de seu nome mexeu inteiramente com a política brasileira, desbancando os partidos, grupos e personagens tradicionais e realinhando os pólos do conflito político no país.
Bolsonaro é também um caso clínico. Suas alterações de comportamento são evidentes. Fala-se abertamente de suas “esquisitices” e “bizarrices” [i]. Se fosse um cidadão comum, tais alterações seriam evidentes e relevantes apenas para os próximos. Por se tratar do Presidente, estas alterações são mostradas diariamente para o Brasil e o mundo e afetam o Brasil e o mundo.
Litigante, agressivo, grosseiro, mal-educado, deselegante, traiçoeiro, impulsivo, irritável, rígido, invasivo, fantasioso, vingativo, coprolálico, mitômano, manipulador, inconsequente, com falsas interpretações, com ideias persecutórias, conspiracionistas, megalomaníacas, hiper-moral, sem autocrítica, sem culpa, sem angústia, com limitações cognitivas… Os termos variam, bem como as interpretações sobre o seu significado psicopatológico, mas coincidem em assinalar as “anormalidades” da conduta presidencial. É um caso clínico que se apresenta ao vivo, a céu aberto; caso complexo em que as dimensões política e psicopatológica se imbricam visceralmente. Merece estudo aprofundado.
Infelizmente, o “material clínico” a que temos acesso se limita ao seu comportamento. Sem acesso ao que pensa sobre seu próprio comportamento, ao que sente, à sua posição subjetiva – como ocorreria se estivesse numa consulta ou sessão – restringe-se muito a possibilidade de análise. Por outro lado, isto não impede que se abram linhas de investigação e se levantem hipóteses sobre o caso.
Em relação ao discurso proferido na Igreja, ressalte-se o tom pessoal, intimista, adotado para evocar os que o precederam: “ouvi de meus antecessores”. É como se Temer, Dilma, Lula, FHC, Collor tivessem confessado a ele suas respectivas solidões. É um fato que, de fato, não ocorreu. Trata-se apenas de uma figura de retórica, fake news.
Afirma que houve uma escuta que nunca se deu. Nada ouviu de pessoal dos ex-presidentes do Brasil porque nunca foi interlocutor de nenhum. Cria a ficção de tê-los ouvido simplesmente para ressaltar sua pseudo-intimidade e sua absoluta diferença em relação a eles. É o seu estilo discursivo que mistura desavergonhadamente mentiras, fantasias, concretudes, platitudes, preconceitos, crenças, ignorância.
Postando-se como o receptor imaginário das confissões presidenciais, Bolsonaro se apresenta como uma exceção: todos sentiram a solidão do poder, menos ele. Na série dos presidentes do Brasil, todos solitários, Bolsonaro é ao menos-um que escapa da solidão. O lugar de exceção é reivindicado e praticado por Bolsonaro de forma extensiva. Lembrou, para os fiéis, que realizava uma difícil missão, mas que “Deus sabia o que fazia e capacitava os escolhidos”[ii]. Acredita-se escolhido e treinado por Deus para realizar a difícil missão de presidir o Brasil. Eleva seu estado de exceção à máxima potência.
No seu discurso, esboça uma teoria da gênese da solidão política que aplica a todos que o precederam. Eles sentiram a solidão no poder porque tinham “descompromisso com a lealdade ao povo brasileiro e se afastaram do nosso criador” [iii]. Ao revés, ele, Bolsonaro, comprometido com a lealdade ao povo e bem próximo de Deus, não poderia se sentir solitário. Além de uma teoria da gênese, sugere uma forma de tratamento da solidão inspirada em seu exemplo, e que é introduzida com uma desfeita lançada contra todos seus antecessores, supostamente “desleais” com o povo brasileiro.
Em sua proposta de tratamento, Bolsonaro parte do reconhecimento de uma verdade trivial do ser falante: relacionando-se com os outros (a) e com o grande Outro (A), o sujeito nunca está sozinho. Aplica a si o esquema L [iv]de Lacan colocando Deus no lugar de A o e o povo brasileiro no lugar de a
Populista, Bolsonaro se jacta de estar em comunhão com o povo, de ser leal a ele, comprometido com suas causas. ‘Gente como a gente’, fala diretamente com o povo. Fala do povo como se este fosse um corpo único, sem fraturas e divisões, ao qual seu próprio corpo adere por identidade e contiguidade. Escamoteia o fato de que foi eleito por uma parcela, num momento de polarização e conflagração social, e que tem perdido o apoio de parte de seus eleitores.
Religioso/místico, Bolsonaro se jacta de estar próximo de Deus e de ser seu escolhido. Deus acima de tudo é um de seus lemas. Não se conhece a intimidade de sua relação com Deus. Conversa com Ele? Ele responde? Ouve as vozes de Deus? Com formação religiosa, católico e há 3 anos convertido por um bispo da Igreja Universal, apoiado maciçamente pelos evangélicos, Bolsonaro parece crer que seu segundo nome – Messias – é, além de nome próprio, uma função que deve encarnar.
Se, por estar acompanhado pelo povo e por Deus, Bolsonaro não se sente sozinho, é impossível, para ele (e para qualquer um) escapar da solidão de proferir seus próprios enunciados, sua enunciação, tomar suas decisões e responder por seus atos. Como todos os soberanos, ele está absolutamente só, verdade recusada em seu discurso pela negação “não sinto”.
Nas fórmulas da sexuação[v], Bolsonaro ocupa o lado ‘Homem’ numa posição de exceção. Escolhido por Deus, acredita que não está submetido, como os demais, à castração/solidão. Por mandato divino e popular, ocupa o lugar do pai primevo freudiano, todo potente, detentor do poder legiferante e executivo e, portanto, fora da lei.
H M
Diferente do neurótico, submetido à lei da castração, Bolsonaro ou a denega ou a forclui. Ocupando o lugar de exceção – fora da lei, acima da lei, identificado a ela – está permanentemente em conflito com as leis do país, instituições, história e cidadãos brasileiros. Seus atos, falas e postagens em redes atacam o laço social de múltiplas formas e provocam tumultos em série. Diariamente aguardamos as expressões da coprolalia presidencial, servida em cafés da manhã com a imprensa.
A lista de estultices não para de crescer: o nazismo é um movimento de esquerda, a ditadura militar nunca existiu, o coronel Ustra foi herói nacional, não existe fome no Brasil, o programa ‘mais médicos’ pretendia espalhar focos de guerrilha, se o kirchnerismo vencer, a Argentina vai se transformar numa Venezuela, para resolver o problema do meio ambiente é só fazer cocô dia sim dia não, as ONGs incendiaram a amazônia…
Presidente eleito de uma república, na vigência do estado democrático de direito, Bolsonaro tem comportamentos e atitudes frontalmente contrários à pluralidade democrática, à res pública e ao direito. Ataca homens, mulheres, homossexuais, trans, nordestinos, crianças, esquerdistas, feministas, japoneses, artistas, intelectuais, índios, negros, cientistas, políticos, estudantes, presidiários, advogados, militares, aliados, mortos, governos estrangeiros. Ataca os outros poderes, meio ambiente, educação, ciência, institutos de pesquisa, agências reguladoras, desmonta conselhos, escolhe um filho para embaixada, nomeia e demite dirigentes ao seu bel prazer, sonha armar a população, militariza o comando do país. Bolsonaro, na sua necropolítica, dá tapas na cara da civilização[vi]. Indiferente às críticas, responde “sou o que sou”, repetindo a fala de Deus no Monte Sinai.
Poderia ser enquadrado em vários crimes de responsabilidade. Bastaria evocar o artigo 7 do capítulo V da Lei 1079 que resume todas as demais infrações: “é considerado crime de responsabilidade proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”[vii]. Talvez os vários juristas que se manifestam publicamente contra Bolsonaro, resolvam, num momento político oportuno, entrar com uma representação no STF pedindo seu impeachment. Há infrações à Constituição bem mais graves do que a pedalada fiscal de Dilma Roussef.
Para Miguel Reale Jr, o caso Bolsonaro não é de impeachment, mas de interdição[viii]. Se, hipoteticamente, um processo de interdição fosse instaurado, qual seria o resultado? Submetido a uma perícia, o que um psiquiatra ou um psicanalista constatariam no caso? Com todas as ressalvas que a análise de um caso baseado em falas públicas e comportamento político comporta, provavelmente colocar-se-ia, para o psicanalista, o diagnóstico diferencial entre psicose, perversão e canalhice (no sentido lacaniano) e, para o psiquiatra, o diagnóstico diferencial entre transtorno da personalidade (F 60 – CID 10) e transtorno delirante (F22 – CID 10). Confirmadas estas hipóteses, poderia ser interditado. E no caso de cometer algum crime comum poderia ser considerado inimputável ou semi-imputável e obrigado a cumprir medida de segurança.
De qualquer forma, se, em suas ações táticas, Bolsonaro é tosco, grosseiro, inábil, criando litígios com todos segmentos sociais, inclusive com seus aliados, em sua estratégia de destruição da sociedade civil e desmonte do aparelho público e estatal e em sua política de ocupação autoritária, militar, cultural e ideológica é muito bem-sucedido. Sua ‘loucura’ é destrambelhada, mas não sem rigor.
Bolsonaro em sua não-solidão é um enorme risco para a república e para o estado democrático de direito no Brasil. Impeachment ou interdição?