BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
Verdade e real em João Guimarães Rosa
Elisangela Miras
Psicóloga, psicanalista, mestre em comunicação em semiótica PUC-SP.
Na novela Em conversa de bois, que se encontra em Sagarana de João Guimarães Rosa[1], o personagem Manuel Timborna afirma que é certo e indiscutível que os bois conversam entre si e com os homens, e isto, se comprova nos livros das fadas carochas.
Rosa o descreve da seguinte maneira: “Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar”.
Manuel Timborna traz uma verdade que diz comprovada. A verdade não é aquilo que se conta nas novelas quase sempre familiares nas análises? Aquilo que tem um sentido por vezes reatualizado?
Coisas que as pessoas não sabem ou não querem escutar, fez Freud responder de uma outra maneira. Ele escutou as histéricas de seu tempo, chegando a confessar a Fliess que não acreditava mais em sua neurótica e com isso formulou a realidade psíquica ou ficcional, necessária para se defender do real. Lacan no Seminário XXIII[2] diz que em Freud é patente a distinção entre o verdadeiro e o real, o primeiro dá prazer e o segundo não, ainda neste Seminário afirma que só é verdadeiro o que tem um sentido e o real não tem sentido algum, aqui Lacan se refere às rodinhas de barbantes e suas cores. Para Freud o inconsciente é redutível a um saber, o que Lacan representou por S1-S2, ou seja, a representação do sujeito:
A definição que dou do significante ao qual confiro o suporte S índice 1 é representar um sujeito como tal, e representá-lo verdadeiramente (…) conforme a realidade.
O verdadeiro é dizer conforme a realidade. A realidade, nesse caso, é o que funciona, funciona verdadeiramente . Mas o que funciona verdadeiramente não tem nada a ver com o que designo como real. (Lacan, 2007, pgs127 – 128)
O real do qual se serve Lacan não se trata, portanto, da realidade em Freud. Este real, cuja poesia toca é o que Lacan chamou de sua invenção.
A narrativa de Timborna, que estaria mais do lado da realidade verdadeira, passa pela mudança do narrador-poeta que propõe contar de outro modo: Só se eu tiver licença de recontar diferente , enfeitado e acrescentado ponto e pouco…
Este ponto de virada, ou ponto de poesia, aparece na pequena novela com homofonias, elipses, onomatopeias e neologismos. Neste aspecto, Milner (2012) retrata o ato de poesia como um ponto de cessação da falta ao escrever, onde poesia e verdade se encontram, na medida em que a verdade é aquilo com que a língua está em falta, mas que exige ser dito do ponto de vista ético. Cita Mallarmé para quem o verso remunera a falha das línguas: “Para outros como Mallarmé ou Saussure, o ponto em que a falta cessa – o um a mais que a preenche – reside na própria fonia; trata-se, então de despojá-la do que ela tem de útil na comunicação, isto é, renunciar ao distintivo: não mais o cúmulo da pureza do sentido, mas a faceta multiplicada de homofonia”. [3]
O autor acrescenta que o poeta é reconhecido justamente por afetar a língua, é o que faz Rosa, desde a descrição do boi Buscapé cuja barba desdece, o quase sol de setembro que é despalpebrado, da repisonga da fala do boi Brilhante enquanto dorme, do carreteiro João Bala que vai em seu carro de boi mesmando, do boi que se agita no ritmo do costelame, que gosta maismente de se emparelhar com os churriões, o boi também remoendo e tresmoendo o capim comido-de-manhã.
O nhein… nhenhein… renheinhein… da cantiga do carro de bois. O chlape chlape dos estalidos das alpercatas de couro cru. Quando bufa o boi Canindé Ong! Moung! O Uf! Pfu que sopra boi Brilhante. O Muh! Mung! que tuge boi Brabagato e o Oon! Oung! do bufo do boi Buscapé.
A inserção do novo, da poesia, faz revirar a verdade da história da carochinha, como a luva em seu avesso, tocando o impossível de dizer.
É bastante conhecida a frase de Lacan dita em Televisão: “Sempre digo a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real”[4].
Timborna quer contar sua verdade, o poeta advertido de que esta não pode ser toda dita, recorre às palavras inventadas, às figuras de linguagem, ou seja, aos sons e palavras que tocam o real, uma verdade que tem a ver com o real.
Ao falar de Joyce, Lacan diz que quando se escreve pode-se tocar o real, mas não o verdadeiro. Temos mesmo algo da verdade e do real que se imbricam, que não se opõem. Feitos da mesma matéria entre discurso e aquilo que pode ser inventado. Não é isto que se busca em um final de análise? Que cada um possa no seu sertão fazer uma invenção própria?