BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
Sensível à palavra
Élida Biasol
Psicanalista, Associada ao CLIN-a

Eu ainda era estudante de psicologia. Estava fazendo um estágio em que atendia uma criança psicótica 3 vezes por semana. Desde lá, já era muito envolvida pela psicanálise, mas naquela época, a orientação que seguia era da escola inglesa. A diretriz era a de que o analista, munido de uma história familiar prévia traduzida na linguagem da psicanálise, lançasse suas hipóteses ao paciente. O que servisse, serviu, o que não servisse, não serviu. Como uma boa estudante, segui a instrução. Após alguns atendimentos, fui acometida por uma crise de angústia. Pensei: mas como assim? Lançar minhas palavras? Até onde? Até que se aceite como verdade o que sai da boca do analista? Quer dizer que se fosse outro praticante a atender o mesmo paciente seria tomado um rumo diferente? Concluí: mas isso diz de quem fala e não de quem se está escutando.
Foi com Lacan que aprendi que a condição fundamental para a prática psicanalítica é ler o texto do paciente, ser sensível a cada palavra do paciente. Na aula do dia 14 de dezembro de 1976, Lacan diz: “Tout ce qui n’est pas fondé sur la matière est une escroquerie – Matériel – ne – ment”[1]. Tudo que não é fundado na matéria é uma escroqueria – matéria – não- mente/materialmente. Essa formulação de Lacan vem para fazer um basta ao delírio que a psicanálise estava sendo: ele queria “proteger a psicanálise de sua tendência delirante que ele chama de “preferir o inconsciente acima de tudo”” [2]. A tendência delirante da psicanálise decorre da série de significantes que são a verdade do desejo inconsciente, em que um deslize (bévue) a mais, um equívoco a mais, um sentido a mais é sempre possível. Quer dizer, em uma análise, continuar tomando o significante na série ad libitum é o delírio.
Nesse momento do ensino de Lacan, o inconsciente é feito de “um-deslize” (une-bévue) que são significantes-um que sempre geram equívoco. Esses significantes-um são marcas de um modo de gozo que permanece sempre o mesmo. Dizendo de outra maneira, aqui o inconsciente não é mais estruturado como uma linguagem, aquele constituído pelos efeitos dos significantes, mas o inconsciente como o Um-sozinho que se repete, pura repetição do mesmo.
“A noção de matéria é fundamental na medida em que funda o mesmo” [3]. Um mesmo que se refere ao fora de sentido, que não tem nenhuma necessidade de sentido, o sentido lhe é disjunto. O material se apresenta como corps-sistant (corpo resistente/consistente), sob a substância do corpo e isso que é consistente é o que faz unidade [4], é o que faz Um. Então é o Um que marcou um corpo. Isso é o que é radicalmente singular para cada um.
No percurso de uma análise, há o tempo em que o sentido engendrado ao Um domina. É o tempo de S1 que se articula com S2 produzindo um saber, um sintoma a ser decifrado. Na neurose, por exemplo, o paciente chega com uma queixa, em geral, o outro que é causador de seu mal-estar. A intervenção do analista vem para fazer o analisante adentrar sua cadeia de significantes, passando da queixa para a implicação nessa história que fala. É a chamada retificação subjetiva. S1 se articula à fantasia, ligando assim o gozo do sujeito com o Outro da linguagem. O S1 enlaçado na fantasia recobre seu caráter assemântico, despistando o fora de sentido de S1. Só ao ultrapassar o gozo do sentido que se alcança o significante-um assemântico e então a um Outro gozo.
O deslocamento que se opera é do inconsciente estruturado como uma linguagem para a dimensão real, ou seja, daquilo que escapa a linguagem, ao sistema da linguagem, para aquilo que aponta ao significante-um que não é dialético, que não é semântico. Sintoma aqui é um acontecimento de corpo, não mais decifração do inconsciente. Há uma redução do sintoma que vai do estatuto simbólico à dimensão real. O efeito da queda de sentido abre caminho para o inconsciente real, “inconsciente que se lê, porém não se interpreta mais” [5].
Clotilde Leguil [6], ao falar de sua análise, ilustra bem essa retenção de sentido. Ela conta que para chegar nesse ponto foi preciso passar pela verdade, por isso que engendra o sentido e que durou mais de 16 anos. Com a morte de sua mãe, seu drama era viver um luto pela perda de seu lugar de falta que ocupava para ela, bem como o confronto que lhe restava desse amor: uma indivisão com seus irmãos que desembocava numa intensa discórdia familiar com eles. Seu desejo estava asfixiado nesse ”amor-paixão” que não encontrava ponto de basta. Como filha mais velha, acreditava ter que salvar tudo o que tinha sido perdido nessa família. À medida que sua análise avançava, ela consentia em perder esse gozo, o que, consequentemente, liberou libido para ser posta a serviço do desejo. Então vem a “angústia diante da voz autoritária da Outra mulher, sentimento de ser filha perdida”. Foi através de um sonho que reencontrara um enunciado com o qual nunca havia se preocupado: seu pai perdera a irmã mais velha, por causa de uma história obscura de água contaminada (l’eau) e toda vez que ele contava seus irmãos, ele contava também a primeira morta. É a irritação da mãe ao contar a primeira que lhe faz enigma: “É preciso contar a primeira?”. Isso faz eco em seu corpo. Uma irrupção de gozo que se articula a esse significante “a primeira”. O final dessa análise se deu com a articulação da letra (letra que para ela adveio em torno do equívoco l’eau/O) ao significante “a primeira”, desarticulado do significado, articulado com o efeito de gozo. Como se pode observar, o significante-mestre “a primeira” estava desde o primeiro tempo de sua análise, mas era tomado na sua fantasia, na trama de sentido. A separação S1-S2 revela então o eco no corpo que a marca: “é preciso contar a primeira?”. Inconsciente que se lê, inconsciente real.