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Projeto Caminho de Volta: uma possibilidade de escuta para casos de desaparecimento e fuga de adolescentes
Em 2004, o Projeto Caminho de Volta (www.caminhodevolta.fm.usp.br) foi desenvolvido por uma equipe multidisciplinar do Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da USP, com a finalidade de auxiliar a identificação de crianças e adolescentes desaparecidos no Estado de São Paulo, cuja média é de 9000 casos/ano. A princípio esse auxílio seria por meio do cruzamento de informações genéticas dos perfis de DNA de familiares consanguíneos com os perfis de DNA dos desaparecidos quando encontrados, desde que não fosse possível sua identificação. Por exemplo, no caso de mudanças fisionômicas do desaparecido em decorrência do tempo do desaparecimento, de crianças e adolescentes em situação de abrigamento sem identificação e até de cadáveres desconhecidos, ossadas ou restos humanos. Os perfis seriam armazenados em Bancos de DNA.
Para ter acesso a essas famílias foi assinado um convênio entre o Projeto e a Secretaria da Segurança Pública para atendê-las na 4ª Delegacia de Pessoas Desaparecidas do Dep. de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), única delegacia da capital responsável pela investigação desses casos. Os critérios para a entrada no projeto foram que as famílias tivessem um registro do desaparecimento na delegacia e que os desaparecidos fossem menores de 18 anos na época de seu desaparecimento[1].
Todavia, somente o cruzamento de informações genéticas não responderia uma pergunta crucial: por que ocorriam esses desaparecimentos? Como estariam psiquicamente as famílias e os encontrados após o desaparecimento? Como seria o retorno do encontrado depois de tanto tempo desaparecido? O significante “Caminho de Volta”[2] surgiu a partir dessas primeiras indagações. E, na tentativa de encontrar algumas respostas, foi desenvolvida uma metodologia de atendimento as essas famílias[3]. As entrevistas são feitas na delegacia, após as famílias terem conversado com os policias, que as convidam a conhecer o Caminho de Volta. A participação é gratuita e voluntária. As famílias que aceitam se dirigem a um espaço destinado a escutá-las por meio do dispositivo analítico, uma vez que a coordenação dessa clínica é orientada pela psicanálise lacaniana, tanto na seleção dos profissionais do Projeto quanto nas supervisões dos casos. Ao todo são realizadas 4 entrevistas. Na primeira, o psicólogo apresenta o Caminho de Volta dizendo sobre a importância e coleta do material biológico para os bancos de DNA. Esclarece sobre a realização de mais entrevistas, chamadas de retornos, que serão feitas em espaços de quinze a vinte dias na delegacia, enfatizando a importância da presença nesses retornos, da criança e/ou adolescente, quando encontrado. Se concordarem, as famílias assinam um Termo de Consentimento Pós-Esclarecido. Não há troca de informações sobre o caso com a polícia.
O trabalho de escuta nas entrevistas busca tomar os casos um a um, em sua singularidade, mas aponta particularidades muito interessantes. Ao contrário do que comumente é associado ao desaparecimento, por ser o mais divulgado na mídia, na grande maioria dos casos, principalmente de adolescentes, trata-se de fugas de casa que começam na entrada da puberdade e não de subtrações conhecidas como “raptos ou roubos” de pessoas que ocorrem por uma ação criminosa, praticada por terceiros e cujos motivos são diferentes de uma fuga de casa.
As adolescentes fogem o dobro, quando comparadas com os rapazes e o número de homossexuais e bissexuais femininas também é maior[4]. A repetição das fugas ocorreu em mais da metade dos 1150 casos até hoje atendidos e esses desaparecimentos tem uma resolução rápida, pois os adolescentes voltam no mesmo dia ou nos dias e semanas seguintes. E depois voltam a fugir, em um movimento de repetição que insiste. As entrevistas revelam ainda que os conflitos familiares sem violência física são o que mais aparece no discurso, tanto das famílias quanto dos adolescentes. Constatação que vai em direção oposta aos dados da literatura nacional e internacional, que apontam a violência doméstica como o principal agente facilitador para a ocorrência de fugas.[5]
Uma fragilidade da função paterna e o empuxo ao gozo sem limites aparecem na maioria dos relatos. Por um lado, adolescentes reivindicando maior autonomia, tanto no ir e vir quanto no usufruir da sexualidade, sem dar satisfações ao Outro parental (escolhas de parceiros, frequentar bailes funk, usar roupas provocativas, situações de exploração sexual etc.). E por outro, familiares que, ou não sabem como se posicionar como pais, ou exercem sua autoridade de forma ditatorial, invasiva ou devastadora. Somam-se a isto o consumo de drogas e álcool, o envolvimento no tráfico ou a prática de atos infracionais[6]. Todavia, estes são conflitos que também podem aparecer em famílias de adolescentes que não fogem, podendo desencadear outros sintomas. Nas famílias do Caminho de Volta, o sintomático são as fugas, que podem ser endereçamentos, atuações ou até passagens ao ato. Os adolescentes fogem quando não conseguem nomear a angústia, que pode surgir de questões ligadas à mudança em seus corpos, à sua identidade e ao encontro sexual, dúvidas quanto a seu futuro, dificuldades de relacionamento e para encontrar um lugar no laço social.
A fuga, concebida como um sintoma em ato e não um distúrbio de comportamento, permite que, nas supervisões semanais dos casos, seja possível observar qual lugar o adolescente ocupa no romance familiar, que significantes lhe são atribuídos, qual o sentido da fuga para o sujeito que desaparece, por que voltou para casa, que demandas os sujeitos apresentam, quais são os modos de gozo de que não abrem mão e o que se repete na história familiar além das fugas, ou seja, que outros sintomas se manifestam. Como se trata de uma intervenção por tempo limitado, os casos são encaminhados para outros serviços que possam lhes oferecer desde um tratamento psicanalítico, psiquiátrico, médico, até participar de atividades sociais ou esportivas em instituições que propiciem condições para a construção de uma nova maneira de relacionamento com o Outro social.
Um efeito dessa clínica específica de adolescentes que desapareceram quando fugiram foi a criação do significante “desfugir”, resultante da junção dos significantes desaparecer e fugir. O “desfugir” traz uma gama de questões clínicas para o analista que se propõe a escutar os efeitos de um sintoma presente nos adolescentes que procuram, longe da família, encontrar uma maneira de viver “a verdadeira vida” como salientou Lacadée ao parafrasear o jovem poeta Rimbaud, que nas suas errâncias “tinha pressa para encontrar o lugar e a fórmula”[7].
Claudia Figaro-Garcia (comissão científica)