BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
O truque do sonho
Cynthia Gonçalves Gindro
Associada ao CLIN-a
Como no sonho, a interpretação não trata de entender o que se quer dizer, mas sim, de um texto. Como diz Jacques Lacan[1] no Seminário mais, ainda: “Um sonho, isso não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, isso se lê do que dele se diz, e que se poderá ir mais longe ao tomar seus equívocos no sentido mais anagramático do termo”.
O que do sonho não pode ser todo, e se diz nas entrelinhas, permite, além da direção do tratamento analítico, uma orientação política no que concerne à função da palavra e da verdade nos novos tempos, como aquilo que comporta um enigma e não uma verdade absoluta, do truque construído pelo parlêtre de verdade mentirosa e sobre seu gozo.
Ao tentar ler esse tema, uma aproximação entre a verdade, o gozo e o sonho me pareceu interessante nesse sentido.
Sabemos, desde Freud, que a elaboração do sonho comporta uma vestimenta com os restos diurnos, e diz mais do que sabemos – do que queremos dizer com eles, já que inclui um dizer da textura de lalíngua ao falhar nessa elaboração.
Há algo que se põe em jogo no sonho como corpo falante e gozante, ao incorporar algo que não se pode nomear, que não se vê, é indecifrável e inominável, onde se produz um efeito de afeto – que muitas vezes desperta, que se localiza no limite do simbólico e do imaginário, e é onde há um limite chamado umbigo.
J-A. Miller[2] afirma que existem sonhos que podem apresentar o gozo não pela via ficcional que o interdita, mas pela via do gozo como acontecimento de corpo; assim, se faz presente, e ele diz: “isso pode advir no sonho”. Há uma lógica de interdição/ permissão no sonho como formação do inconsciente, mas também no que é acontecimento de corpo do regime do gozo como tal, que escapa ao sentido e não à lógica.
Marga Auré[3] esclarece sobre um real traumático que no sonho se esconde na falta de representação. O umbigo do sonho é onde confluem as associações que desembocam no Unerkannt, não-reconhecido ou o indizível, como um nó do sonho, e Lacan o correlaciona com o Urverdrangung, recalque original, que se refere à própria natureza do simbólico, que comporta um furo. Sendo assim, o umbigo do sonho furo e nó, como uma cicatriz que marca a opacidade do inconsciente sobre sexo e morte, marca a ausência da relação sexual. E é justamente com a função de furo que o real se reduz a pulsão, ao que se liga aos orifícios corporais.
Para especificar esse ponto, em resposta a Marcel Riter[4], Lacan diferencia o real pulsional e o da repressão primária do inconsciente; um seria a função de furo das zonas erógenas e o outro como o não reconhecido do inconsciente. Esse último é a cicatriz, marca que ficou da função de amarração de um furo que fechou. Dessa maneira, Hebe Tizio[5] muito precisamente localiza que o umbigo dos sonhos não é o real em si, mas anda sobre ele, já que não se pode ir mais além, e é como Freud vai descrever do impossível de ser reconhecido da repressão primária, e Lacan o escreve como o A barrado, da forclusão generalizada.
Hebe Tizio[6] continua dizendo que é no pesadelo que a experiência massiva da angústia encarna no medo e afligi o corpo, um sentimento de reduzir o corpo ao gozo. Ela complementa que é o umbigo do sonho que efetivamente dá o nó, e no pesadelo isso surge quando o simbólico se afrouxa e deixa vivenciar esse gozo do corpo, que vem em cima do sujeito o assolando. Mas o pesadelo leva até certo ponto que não se pode mais ir além, seria como um eco do encontro com um fragmento de real.
Assim como no sonho chega-se a um ponto do indizível, na vida o desejo é de continuar dormindo, a vida também está distante de um despertar. Lacan[7] diz que um despertar total é impossível, e que o mundo não é mais que sonho de cada corpo.
Trata-se daquilo que durante uma análise esteve desde o início como direção do tratamento, o que se diz nas entrelinhas. Desse truque que cada sujeito encontra com o real, e é da ordem de um furo e uma elucubração de saber sobre lalíngua. Como um fio que tece as tramas de uma análise e também as tramas dos sonhos.
No percurso de uma análise, como Silvia Elena Tendlaz[8] diz, os sonhos revelam cifrados como semblantes e também com o furo central do que não é dito com o tecido de lalíngua que impacta o corpo.
Há um truque que todos inventam para preencher o furo, uma invenção frente ao trauma desse sem sentido, onde não há relação sexual.
Aproximo esse truque ao que no sonho se inventa nos tecidos e cenas que a presença do real não escapa desse entramado, também como em um texto as letras fazem as tramas. E aqui onde existe o trabalho do sonho com os restos diurnos no vestir do que quer esconder, naquilo que inclusive não teria representação, faltam roupas, faltam objetos, da mesma forma que falta no universal encontrar para a mulher a roupagem de um conceito que não existe, do que fica bem claro no dizer de Lacan: “A mulher não existe”.
Não seria esse A barrado justamente o que nos interessa sobre a verdade e o gozo do parlêtre em uma análise? E o quanto esse furo que gira os entre-ditos não há algo de feminino que surge no final de uma análise? Como um real do feminino que é um real que escapa à palavra?
Omaira Meseguer[9] diz: “Os sonhos nos quais o corpo feminino é evocado por meio de uma máscara ou escondido sob os múltiplos véus que tricotam os “espelhamentos” (miroite-ments), os sonhos tentativas de vestimenta.”.
Tal como na experiência analítica, a escrita do sonho é um artificio, um fazer com o que não se pode dizer, um truque ou um blefe no jogo de lalíngua.