O ensino da psicanálise se dá pela transferência de trabalho. Este foi o mote da conversação da Orientação Lacaniana¹ que aconteceu no dia 23 de maio na Seção São Paulo. Ao fim do trabalho de transferência analítica, do saber suposto, haveria um resto que deve ser dirigido para algum lugar, e a transferência de trabalho seria aquilo que se endereça à Escola com o final de uma análise, sustentada por um desejo de saber. Este é um dos destinos possíveis. Apontou-se, inclusive, outra possibilidade: o resto vir a sobrar, transbordar, na comunidade analítica, tendo como efeitos imaginários a formação de grupos, demandas de reconhecimento ou um funcionamento a partir de suficiências.
A transferência de trabalho enlaça a Escola, já que Lacan a propôs em função do trabalho, sua condição. Todos trabalhadores decididos na Escola: não que isso seja um dogma, mas é a proposição de Lacan, diferentemente da IPA, que se fez a partir do desejo de Freud numa lógica regida pelo pai, não pelo seu além, não pelo desejo do analista. Diversamente da identificação, que favorece o funcionamento de grupo por tomar alguém como ideal, a experiência de Escola se dá em torno da causa analítica e do saber inconsciente.
A transferência de trabalho foi tema da questão articulada que Heloisa Prado Rodrigues ofereceu à conversação; ela também situou os acontecimentos que levaram Miller a trabalhar o tema O Banquete dos Analistas. Ressaltou a frase: “O objetivo do ensino de Lacan, segundo sua própria confissão, é a indução ao trabalho; é o trabalho da indução ao trabalho. E não se trata de uma identificação, mas sim de um passe”². Paola Salinas trouxe a questão: como se transmite trabalho? Não basta transferir resultados, há que se transmitir o desejo de saber. Acrescenta-se uma das questões de Cecília Ferretti: qual a diferença entre um professor de psicanálise e um ensinante de psicanálise? A transferência de trabalho só existiria na Escola?
Evidentemente, essas questões se cruzam e outras vieram a se acrescentar no decorrer da conversação. O que fazemos quando damos aula num Instituto? Mesmo quando se fala numa atividade da Seção, estaria aí a transferência de trabalho? Um ponto a ser destacado é que a transferência de trabalho não é dada a priori, ela é efeito, algo ressoa ou não nos presentes. Isso está diretamente relacionado à posição do sujeito em relação à ex-sistência do saber inconsciente. Sendo da ordem do horror, cada um há que se haver com colocar o desejo de saber em ato.
Mesmo esta modalidade de trabalho em funcionamento nesta atividade da EBP – Seção São Paulo em 2018, a conversação, favorece a transferência de trabalho porque tem por objeto induzir à fala; que não sejam somente os Membros da Escola a tomarem a palavra por se autorizarem a ensinar a psicanálise. A inibição pode ser suplantada em favor da enunciação analisante, desde a posição de S(A barrado); caso contrário, corre-se o risco de transformar a psicanálise numa prática iniciática, como aponta Miller em seu Curso.
O ensino da psicanálise não é completo, nem dogmático, nem para ser repetido; ele aponta a indução, convoca a uma transferência de trabalho, disse Miller³. Que cada um que se pronunciou e os que estiveram presentes reconheçam nas palavras deste texto seu quinhão.
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1. Miller, J.-A. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, caps IX e X.