BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
O Elogio da Mentira
Maria do Carmo Dias Batista
Membro da EBP-AMP
Um breve e certamente incompleto percurso cronológico pela obra de Lacan, cada vez que menciona a mentira, nos possibilitará melhor esclarecer a ideia de que a cada mentira corresponde uma verdade aguda, único caso de verdade absoluta, na medida em que, quando mentimos, sabemos bem qual objeto está intencionalmente escondido, oculto por detrás do dito mentiroso. O objeto oculto permite alcançar toda a verdade. Isso se aplica com a mesma força aos processos inconscientes, nos quais, entretanto, a ocultação intencional dá lugar ao recalque, ao esquecimento. Partimos, como é evidente, da ideia de que Lacan elogia a mentira em seu ensino, subtraindo dela a noção de negatividade que lhe dá o senso comum. Busquemos, então, as referências à mentira em seus Escritos e Seminários.
Escreve Lacan sobre o inconsciente no texto “Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise” (1953/1966),
“esse capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes já está escrita em outro lugar”[1].
No Seminário 1[2] (aula de 09/06/1954), diz Lacan,
“[…] No início da experiência analítica há o registro da palavra mentirosa. É a palavra que instaura na realidade a mentira. […] Coloquemos num triângulo de três vértices: ali, a mentira; aqui, o equívoco e, depois, a ambiguidade. […] A palavra é por essência ambígua”.
E ainda no Seminário 1[3] (aula de 30/06/1954),
“[…] À medida que a mentira se organiza, desenvolve seus tentáculos, lhe é necessário o controle correlativo da verdade. Porque a mentira, nesse sentido, realiza, desenvolvendo-se, a constituição da verdade”.
No Seminário 2[4] (aula de 25/05/1955),
“[…] Não teríamos [nós analistas] razão alguma de pensá-lo se não tivéssemos o testemunho daquilo que caracteriza a intersubjetividade, isto é, que o sujeito pode mentir para nós. É a prova decisiva. Não digo que seja o único fundamento da realidade do outro sujeito, é a prova”.
No Seminário 4[5] (aula de 09/01/1957), falando sobre o primado do falo e a jovem homossexual,
“[…] Com a sua interpretação Freud faz eclodir o conflito […] quando se tratava de uma coisa inteiramente diferente: revelar o discurso mentiroso que estava ali no inconsciente”.
No mesmo Seminário 4[6] (aula de 25/01/1957), sobre o sonho da jovem homossexual,
“[…], Mas, então, o inconsciente pode mentir?”
No Seminário 6[7] (aula de 10/12/1958),
“[…] Procurando alguma coisa que nos levaria ao segredo do desejo. […] Como comunicar aos outros algo que se constituiu como segredo? Resposta: por alguma mentira” [tradução nossa].
No Seminário 7[8] (aula de 23/12/1959),
“[…], Mas a defesa, a mutilação que é a do homem, não se constitui somente por deslocamento, metáfora e tudo o que estrutura sua gravitação em relação ao bom objeto. Ela se constitui por algo que tem um nome, e que é, propriamente falando, a mentira sobre o mal. No nível do inconsciente o sujeito mente. E essa mentira é a sua maneira de dizer a verdade acerca disso”.
Ainda no Seminário 7[9], na mesma aula,
“[…] É justamente aí – na medida em que minto, que recalco, que sou eu, mentiroso, quem fala – que posso dizer Não mentirás. Nesse Não mentirás, como lei, está incluída a possibilidade da mentira como o desejo mais fundamental”.
No Seminário 8[10] (aula de 23/11/1960), Lacan cita a obra de Zucchi, pintor maneirista [1547-1590], Psiche Sorprende Amore, que viu na Galeria Borghesi,
“[…] Talvez cheguemos a ver despontar a noção de que, afinal, só os mentirosos podem responder dignamente ao amor”.
No mesmo Seminário 8[11] (aula de 12/04/1961),
“[…] Em outras palavras, o sujeito só afirma a dimensão da verdade como original no momento em que se serve do significante para mentir”.
No Seminário 10[12], (aula de 23/01/1963), voltando a falar de Freud e da interpretação dos sonhos da jovem homossexual,
“[…] Essa paciente […] mentia para ele em sonhos. O precioso ágalma desse discurso […] é que Freud se detém, atônito, diante disso: Com que então o inconsciente é capaz de mentir! […] Esse é o ponto em que Freud se recusa a ver na verdade, que é sua paixão, a estrutura de ficção como algo que está em sua origem. […] O eu minto é perfeitamente aceitável, uma vez que o que mente é o desejo, no momento em que, ao se afirmar como tal, expõe o sujeito à anulação lógica em que se detém o filósofo (Epimênides) ao ver a contradição do eu minto”.
No Seminário 11[13] (aula de 22/04/1964), ao falar da divisão entre enunciado e enunciação,
“[…] É primeiro como se instituindo numa, e mesmo por, certa mentira, que vemos instaurar-se a dimensão da verdade, no que ela não é, falando propriamente, abalada, pois a mentira como tal se põe, ela própria, nessa dimensão da verdade. […] O eu o engano provém do ponto onde o analista espera o sujeito, e lhe remete […] sua própria mensagem em sua significação verdadeira, quer dizer, de forma invertida. Ele lhe diz – nesse eu o engano, o que você envia como mensagem é o que eu mesmo lhe exprimo e, fazendo isso, você diz a verdade”.
No Seminário 13[14] (aula de 12/01/1966),
“[…] A mentira pode se afirmar como verdade”.
No Seminário 18[15] (aula de 12/02/1969),
“[…] O cristianismo […] foi a verdade, e forneceu a prova de que em torno de toda a verdade que tem a pretensão de falar como tal prospera um clero que é obrigatoriamente mentiroso. […] Chegarei eu a dizer que a pérola da mentira é a secreção da verdade?”
Ainda no Seminário 18[16] (aula de 05/09/1969),
“[…] No Entwurf Freud designa a concatenação inconsciente como sempre partindo de um proton pseudos, o que só se pode traduzir corretamente, quando se sabe ler, por a mentira soberana.”
No Seminário 19[17] (aula de 03/02/1972),
“[…] Se a verdade [em sua estrutura de ficção] nunca pode ser senão meio-dita, se esse é o núcleo, a essência do saber do psicanalista, é porque no lugar da verdade se encontra o S2, o saber. Trata-se, portanto, de um saber que deve sempre, ele mesmo, ser questionado”.
Em “Televisão”[18] (Natal de 1973),
“Sempre digo a verdade: não toda, pois dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível materialmente: faltam palavras. É por esse impossível, inclusive, que a verdade tem a ver com o real”.
No Seminário 23[19] (aula de 18/11/1975),
“[…] Quando falamos e usamos um advérbio, quando dizemos real-mente, mental-mente, heroica-mente, o acréscimo desse mente já é, em si, indicativo de que mentimos. Há mentira indicada em todo advérbio. Não é por acaso que ela está aí. Ao interpretarmos devemos prestar atenção nisso”.
No próprio Seminário 23[20] (aula de 13/01/1976),
“[…] Visto que a mentalidade – não há necessidade de dizer mais, a sentimentalidade própria do falasser – […] A menta-lidade enquanto mente é um fato. […] Só há fato pelo artifício. E é um fato que ele mente, i.e., que ele instaura falsos fatos e os reconhece, porque tem mentalidade, i.e., amor-próprio”.
No Seminário 24[21] (aula de 11/01/1977),
“[…] O discurso do mestre é o discurso menos verdadeiro, o mais impossível. Esse discurso é mentiroso e, precisamente por isso, alcança o real.”
Ainda no Seminário 24[22] (aula de 15/02/1977),
“[…] O simbólico suportado pelo significante quando fala só diz mentiras, e ele fala muito. Expressa-se pela Verneinung, porém, pelo contrário da Verneinung (da negação) […] que não fornece a verdade.”
No mesmo Seminário 24[23] (aula de 10/05/1977),
“[…] Pode-se dizer que o real mente? Na análise, pode-se seguramente dizer que o verdadeiro mente. A análise é um longo encaminha-mento [chemine ment], reencontrado em todo lugar. Que o caminho minta nos mostra que, como no fio do telefone, enredamos os pés.”
Findo nosso exemplo pessoal de pensamento e ato obsessivos, ao compilar 23 das referências em Lacan sobre a mentira, continuemos o percurso em direção à clínica, devagar e sempre, construindo este texto entre o maneirismo e o barroco, obedecendo à direção dada por nosso tema. A propósito, tanto Jacopo Zucchi – maneirista – citado por Lacan no Seminário 8, quanto Peter Paul Rubens – barroco – têm quadros sobre o momento em que Psiquê mente para Eros, quebrando o pacto de que ela jamais o veria, a não ser na mais completa escuridão. Ao iluminar o amado com uma lamparina de azeite e se embevecer ao se deparar com a beleza divina de Eros, deixa cair uma gota do azeite em seu dorso. Eros, assustado e surpreso, foge…[24]