skip to Main Content

Paola Salinas (EBP/AMP)

O tabu da virgindade é abordado e justificado devido à hostilidade e ao desejo de vingança que o defloramento provocaria. Ao desenvolver correlações sobre o tema, Freud destaca a frigidez como aspecto importante na vida sexual da mulher, articulando ao Édipo e ao complexo de castração. Associa tal hostilidade, na base do tabu, à inveja do pênis e ao protesto de masculinidade.

A valorização da virgindade seria a extensão do direito de propriedade à mulher, incluindo seu passado, o que é natural e indiscutível para o homem da época; daí a incompreensibilidade do tabu presente nos povos primitivos, os quais, para evitar a hostilidade do defloramento, o fariam em rituais antes do casamento.

Tal valorização se associa à servidão sexual, dependência de uma pessoa com quem há envolvimento sexual, base do matrimônio, explicada em função da repressão sexual feminina, chegando ao sacrifício dos interesses pessoais.

Contudo, tal valorização também ocorre nos povos primitivos, ao ponto do defloramento ter se tornado tabu, proibição de cunho religioso frente à presença de um perigo, ainda que psicológico, segundo a definição freudiana.

Freud toma o horror à efusão de sangue e a angústia frente a todo ato primeiro, como possíveis motivos para o tabu. Contudo, destaca a importância do defloramento em relação à resistência sexual vencida e o fato de ocorrer apenas uma vez. Estamos diante de um acontecimento intenso e único, que tem o peso de um ato.

Este ato traz uma nova significação pelo furo no saber que engendra, presença de algo incompreensível e inquietante, por vezes tratado em rituais de passagem.

Crawley fala da abrangência do tabu em quase toda a vida sexual: “quase poderia se dizer que a mulher é um tabu em sua totalidade. Não somente em situações derivadas da sua vida sexual, menstruação, gravidez, parto e puerpério”2, exemplificando pela necessidade de afastamento das mulheres, em alguns povos, na época de caça, guerra ou colheita.

Verificamos nesse afastamento um temor fundamental à mulher. Esta ocupa o lugar de enigma, e algo disso persiste. A mulher encarna tal diferença em seu corpo.

Neste ponto, Freud fala do narcisismo das pequenas diferenças: “cada indivíduo se diferencia dos demais por um tabu de isolamento pessoal que constitui as pequenas diferenças entre as pessoas, que quanto ao restante são semelhantes, e constituem a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles”3. Poderíamos hipotetizar a repulsa narcisista à mulher.

Embora Freud diga que o tabu com a mulher em geral não esclarece o tabu da virgindade, abre uma questão sobre o lugar do feminino.

Os motivos levantados não explicam o tabu, a intenção de negar ou evitar ao marido algo que seria inseparável do primeiro ato sexual, mesmo que dali surja uma ligação intensa da mulher com o marido.

A gênese do tabu tem uma ambivalência original, que podemos articular à alteridade que a mulher representa. A relação entre o primeiro coito e a frigidez, estaria de pleno acordo com o perigo psíquico que o defloramento traz à tona. O gozo, pelo avesso, a frigidez, marca um funcionamento pulsional outro, articulado à proibição frente à sexualidade feminina.

Freud destaca a ofensa narcísica que o coito pode assumir pela destruição do órgão (hímen) e pela perda do valor sexual da mulher dele decorrente. Com maior importância fala do poder da distribuição inicial da libido, a fixação intensa da libido em desejos sexuais infantis. Nas mulheres, a libido estaria ligada ao pai ou ao irmão, sendo o marido sempre um substituto.

Destaca a inveja do pênis anterior à fase da escolha do objeto amoroso, mais próxima do narcisismo primitivo do que do objeto de amor. Haveria, portanto, algo do narcisismo feminino em jogo nesta hostilidade, hipótese que podemos aprofundar.

__________________________ 1 FREUD, S. “O tabu da virgindade (Contribuições à psicologia do amor III) (1918 [1917]). In: Edição Standard. Vol. XI, Imago: Rio de Janeiro. 1970. 2 _______. Op. Cit. P. 183. N.A.: Freud refere-se à Crawley (1902), Ploss and Bartels (1891), Frazer (1911) e Havelock Ellis [1913]. 3 _______. Op. Cit. P. 184.

Modificações no vivo do corpo*

Luiz Fernando Carrijo da Cunha

 

Fui convidado a falar sobre as “modificações no vivo do corpo que se goza”. Escolhi seguir um caminho um pouco arrojado, mas é difícil, pois a gente pega a coisa de um lado e ela escapa de outro.

É um tema bastante complexo, a meu ver, e vou tomar como orientador o texto de Jacques-Alain Miller que foi publicado na Opção Lacaniana n° 72. O título do texto é “Em Direção à Adolescência”; o encerramento das Jornadas Clínicas no Instituto da Criança, em Paris, onde ele propõe como próximo tema a adolescência. Esse texto está à disposição também no site do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, juntamente com outros: encontrobrasileiro2016.org. Convido-os a ir ver, já fazendo uma propaganda. O tema do XXI EBCF é “adolescência, a idade do desejo”.

Miller inicia essa fala colocando em questão o próprio conceito de adolescência e diz que a adolescência é uma construção. Uma construção que obedece, evidentemente, a determinados conceitos psicológicos, sociológicos etc. Então ele se pergunta o que, para a psicanálise, é a adolescência. E sublinha três aspectos que a gente deve levar em conta.

O primeiro dos aspectos é a saída da infância, marcada pela emergência da puberdade. Puberdade conhecida biologicamente como as modificações do corpo da criança, em direção ao corpo adulto. Ou seja, o aparecimento dos caracteres sexuais secundários, pela emergência dos hormônios na menina e no menino. Então, há uma transformação corporal que ocorre na puberdade, do ponto de vista da biologia, com efeitos psicológicos, diz ele; com algumas consequências psicológicas. Ele não fala consequências “psicanalíticas”. Curioso… Ele usa, aqui, o termo da psicologia.

E faz referência ao texto de Freud, o terceiro dos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade [1908], intitulado “As Metamorfoses da puberdade”, justamente para considerar o que ele vai chamar, nesse texto, de “problema do corpo do Outro”. Já aparece aí uma perspectiva de que a adolescência enfrenta um problema e esse problema se localiza como ‘o problema do corpo do Outro’. Não é só o adolescente que enfrenta esse problema. O problema do corpo do Outro é um problema do humano. Então, ele vai considerar a adolescência, partindo da puberdade, ou das metamorfoses da puberdade, a partir das contribuições de Freud e de Lacan em relação ao tema.

Outro aspecto que ele considera para cernir o conceito da adolescência na psicanálise é a diferença dos sexos: como se dá a diferenciação sexual em homens e mulheres, a partir da puberdade. E aí ele se refere a essa “diferenciação sexual, tal como ela se enceta no período púbere e pós-púbere”. Em seguida faz uma distinção entre Freud e Lacan. Freud considera que a puberdade é o momento do encontro, ou o momento da passagem do autoerotismo para o heteroerotismo; ou seja, a busca do objeto fora do corpo, ou a busca do objeto no corpo do Outro. Ele vai sublinhar essa diferença, evidentemente fazendo alusão ao texto de Freud, não apenas os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, mas o texto subsequente, “A Organização Genital Infantil”, no qual Freud trabalha a sexuação a partir da primazia universal do falo.

Então, tanto para meninas quanto para meninos, o encontro com a puberdade levaria a uma regulamentação do sexo a partir do falo. Miller faz essa referência e diz que Lacan não pensa o corpo do Outro tal como Freud propõe. Ou seja: não se chega, jamais, a gozar do corpo do Outro. Só se goza do corpo próprio. E isto vai ter consequências, tanto em relação ao que podemos considerar como puberdade, quanto à adolescência como uma construção, como um significante.

A pergunta que me fiz a partir dessas duas primeiras abordagens, para cernir o conceito de adolescência, foi: “o que há de real na adolescência?”. É uma pergunta que me ocorreu ao acompanhar o texto de J.-A. Miller, visto que ele tenta respondê-la, ao final, de um modo bastante indireto, bastante lateral. Ele procura deixar a questão em aberto, mas esboça algum tipo de resposta, que vou tentar abordar daqui a pouco.

Para retomar esse ponto dois, depois que Miller faz essa referência ao corpo do Outro e à sexuação, tanto em Freud quanto em Lacan, ele diz que “a puberdade, de toda forma, tanto para Freud quanto para Lacan, representa uma escansão sexual”. Isto me parece importante sublinhar: “Uma escansão no desenvolvimento, na história da sexualidade”. Ora, nós não podemos dizer que escansão seja, propriamente, uma modificação, um novo regime. Em relação a essa questão, lembrei-me de duas passagens que Lacan retoma, uma de Freud, e outra de um escritor francês, André Gide.

Na extensa retomada que Lacan faz do Pequeno Hans no Seminário 4, ele aborda uma questão, a meu ver, muito importante para que possamos entender do que se trata nessa transformação corporal. O Pequeno Hans só tem 3 anos, está longe de ser um adolescente, muito longe. É uma criança, e Lacan sublinha a passagem em que mostra seu pipi ereto para a mãe. Um pipi que se excita, digamos assim, sem a vontade própria do sujeito. Há ali uma excitação que vem propriamente do corpo. Ele mostra isso para a mãe e ela lhe diz: “Não é grande coisa”. Isto Lacan vai destacar como um ponto nodal no desenvolvimento da fobia de Hans, no desenvolvimento do sintoma fóbico desse menino. Ele vai ser tratado por Freud através do pai. Sabemos, também, por Freud e por Lacan, que o pai do Pequeno Hans não era lá grande coisa como pai e, certamente, também não como homem, já que a mãe parecia ser uma histérica bastante determinada em relação a isso. Portanto, isso teve consequências no desenvolvimento de Hans.

Mas o fato é que ele sublinha essa autonomia do corpo do Pequeno Hans e é diante dessa autonomia do corpo que o menino, então, vai se dirigir à mãe, para mostrar a ela, mas, evidentemente, para tentar significar aquilo: ‘O que quer dizer esse movimento do meu corpo a despeito de mim mesmo?’. Nessa retomada que Lacan faz no Seminário 4, ele não chega às elaborações que pôde fazer a partir do Seminário 20, em relação ao corpo que se goza. Mas vou deixar essa passagem para que tentemos articulá-la ao que pode, de fato, estar em jogo nessas modificações corporais.

Uma segunda referência é a André Gide. Lacan tem um texto sobre ele, que está publicado nos Escritos[1] . J.-A. Miller deu uma conferência que está publicada na Opção Lacaniana, na impressa e posteriormente na online, intitulado: “Sobre o Gide de Lacan”[2]. O que mais me chama a atenção é a maneira como Lacan trabalha o personagem Gide no Seminário 5, o Seminário das Formações do Inconsciente, onde ele sublinha um momento da história de Gide em que ele é adolescente e está entrando em casa. Lacan atenta para o fato de que a mãe de Gide era uma mulher extremamente dessexualizada. Em determinado momento, Gide entra na casa da tia e a vê aos beijos e abraços com um amante. Ele passa por onde está acontecendo a cena, sobe as escadas e encontra a prima, que também é adolescente, aos prantos. O motivo do choro é justamente o fato de sua mãe estar traindo o pai com o amante. Ele fica condoído com a situação da prima e passa a ter uma dedicação enorme a ela. Madeleine, futuramente se torna sua esposa. Lacan faz um desenvolvimento no Seminário 5 dizendo o quanto essa cena determinou, por assim dizer, a maneira como Gide foi viver no futuro, ou a maneira como foi conceber a relação entre amor e sexo. Ele se casa com Madeleine, mas transa com meninos, com jovens; ele gosta de rapazes.

Então, Lacan nos diz que a perversão de Gide não é porque ele é homossexual; não se trata da homossexualidade como perversão. Ele seria um perverso porque fazia uma divisão entre o objeto de amor e o objeto de desejo. Não há uma divisão no próprio sujeito, mas a divisão, de algum modo, recai no corpo do Outro. Ele deseja meninos, jovens – sublinha isso com bastante ênfase – e seu amor é por Madeleine, a quem envia muitas cartas de amor. A palavra de amor que uma mulher espera, Madeleine recebeu de Gide; mas quando soube de um certo envolvimento de Gide com outro homem, queimou todas as cartas. Ao saber disso, Gide é atingido no seu ser. Ele fica extremamente decepcionado e tem ali, digamos, uma afecção corporal, que o deixa atordoado, justamente porque Madeleine queimou aquilo que ele tinha de mais precioso, a letra da carta de amor endereçada a ela.

Tomo essas duas passagens do primeiro Lacan para tentar fazer uma báscula para o segundo tempo de seu ensino, para que a gente possa ir ao cerne do que a puberdade pode representar.

Se Miller diz que a puberdade, em si mesma, é uma escansão sexual, esta palavra é muito precisa, não pretende aprisionar o que há de real. Estou em um work in progress e gostaria que vocês me acompanhassem. Pergunto-me se o que há de real na adolescência e pode se conectar à puberdade; se o corpo púbere responde ao que há de real na adolescência. Se, na desconstrução da adolescência que a gente pode fazer, na medida em que ela é uma construção, um significante, se essa desconstrução pode nos levar a alguma coisa no âmbito da puberdade, na sua dimensão real, não simplesmente como uma modificação corporal pela emergência dos hormônios, pela biologia. Minha pergunta é se esse tempo da puberdade porta em si um real traumatizante. Uso esse termo porque a hipótese de que a gente pode lançar mão é a de que a puberdade, como ponto inaugural do fenômeno, do conceito de adolescência, pode representar um acontecimento de corpo. Esta é a minha pergunta.

Retomando o Pequeno Hans, quando ele tem a experiência da ereção espontânea que vai mostrar à mãe, aquilo, para ele, tem o valor de um acontecimento de corpo. E depois, vem a fobia como resposta. Assim como o Gide, que encontra a menina aos prantos, justamente porque a mãe estava traindo o pai; ali também há um acontecimento de corpo. Desse encontro com a sexualidade feminina situada na tia, Gide vai se identificar com o objeto largado que é a prima, Madeleine, com quem ele se casa. Então, essa identificação na posição feminina já seria uma resposta ao impacto que ele tem ao se encontrar com a sexualidade feminina representada pela tia.

Minha ousadia é afirmar que tanto em um caso, o Pequeno Hans, que desenvolve a fobia como resposta, quanto no outro, Gide, que desenvolve a homossexualidade por meio da identificação com a fragilidade da Madeleine, houve um acontecimento de corpo: Hans com a ereção espontânea (não há corpo do Outro envolvido ali) e Gide com o encontro com a sexualidade feminina (onde há corpo do Outro envolvido). Ambos remetem, digamos, a um acontecimento de corpo: em um a fobia vai fazer o papel da resposta; no outro a identificação no lugar da mulher traz a resposta. Coloco isto à prova com vocês, para conversarmos daqui a pouco.

Muito bem, em outra perspectiva, mas também considerando o que há de acontecimento de corpo e como cada um pode resolver esse encontro, há o famoso texto do Lacan, o “Prefácio a O Despertar da Primavera”, que está nosOutros Escritos, página 557. É um texto curtinho, mas não menos difícil, com 3 páginas, escrito em 1974, para um prefácio de uma edição francesa da peça de Wedekind, O Despertar da Primavera. A propósito, acho que ela está em cartaz em São Paulo, como um musical. Seria interessante a gente revisitar.

Nesse texto, Lacan coloca em questão, justamente, dois garotos, dois meninos, que estão frente à frente com a sexualidade e têm que tomar uma decisão. Ou seja, há um ato implicado: ou se opera o ato, ou não se opera o ato. Então, ele toma os dois personagens que a peça traz, que são o Moritz e o Melchior. Um deles opta pelo ato. Há uma menina na jogada, evidentemente, representando o corpo do Outro. Um deles se lança ao ato, correndo o risco de que nesse ato haja um fracasso. Toda abordagem do corpo do Outro redunda em um fracasso, pois a relação sexual não existe. O fracasso é representado sempre pelo gozo do corpo próprio. Como diz Lacan, a tese que Miller retoma nesse texto sobra a adolescência, é que não se chega a gozar do corpo do Outro, mas o fato de eu não gozar do corpo do Outro não quer dizer que eu tenha que evitar o corpo do Outro. Então, nessa peça, um dos personagens se arrisca ao corpo do Outro e o outro personagem não se arrisca. As consequências são diferentes, diametralmente opostas: o que opta por não se arriscar ao corpo do Outro, que fica apenas na fantasia, na elucubração “como é que é gozar do corpo de uma mulher?”, morre, encontra a morte precoce. A metade em diante da peça é um diálogo entre o morto, o menino que morreu, que volta na forma de um fantasma, e aquele que se arriscou. Quanto ao que se arriscou, a menina ficou grávida, a mãe resolveu que ela ia fazer um aborto e a menina acabou morrendo no procedimento do aborto. Mas o mais importante da peça não é o que acontece com a menina e sim o que acontece com os dois meninos, aquele que se arrisca a se lançar no corpo do Outro e aquele que não se arrisca. O que não se arrisca morre e depois, então, a peça passa a ser um diálogo entre o morto e o vivo, com o morto tentando convencer o vivo de que o melhor é morrer, pois é o que lhe resta fazer, já que perdeu a mulher amada. Ele tenta convencer o outro de que esta é a melhor saída. Até que aparece o homem mascarado, que é o grande enigma da peça: o que é esse homem mascarado? Ele vai dizer para um dos personagens, Melchior: “olha, esse aí é um fantasma e ele só pode tomar a palavra no lugar do morto. A isto Lacan dá uma importância enorme: tomar a palavra no lugar do morto. O vivo, por sua vez, além de poder tomar a palavra entre os vivos, pode tomar a palavra, pois está, digamos, sob a égide de um ato, o ato sexual propriamente dito. Ou seja, ele se arriscou ao corpo do Outro e se mantém vivo. Aquele que não se arrisca ao corpo do Outro só pode tomar a palavra dentre os mortos.

Em relação a esse ponto, nem todo mundo tem familiaridade com essa peça, mas tenho certeza de que muitos aqui assistiram ao filme, já bastante antigo, que se chama Sociedade dos Poetas Mortos, onde acontece exatamente a mesma coisa. Pela tirania do pai, O menino é impedido do ato teatral propriamente dito e então, só pode tomar a palavra dentre os mortos. E ele se mata. O filme não tem a mesma riqueza da peça, trata-se de autores diferentes em contextos diferentes, mas aborda esse tema da mesma forma: a partir de que ponto sou autorizado a tomar a palavra? Esse autorizar-se à palavra só pode se dar diante de um risco ao ato. Senão, só posso tomar a palavra dentre os mortos, ou seja, não tomar a palavra.

Então, este homem mascarado tem uma função primordial: nesse prefácio que Lacan escreve, ele diz assim: “Moritz, ao se excetuar disso, exclui-se no para-além. É só ali que ele se conta: não por acaso, dentre os mortos, como excluídos do real. Que o drama o faça ali sobreviver, por que não, se o herói está antecipadamente morto?”. O drama o faz viver, evidentemente, a partir do retorno do fantasma, ele na forma do fantasma. Continua: “É no reino dos mortos que ‘os não tolos erram’, diria eu, com um título que ilustrei”. Ele está fazendo alusão aoSeminário 21 que se chama “Les non-dupes errent”; os não tolos erram. Então, quando não me arrisco ao ato, eu não estou sendo tolo, e com esse não arriscar ao ato, erro e, portanto, só posso tomar o meu lugar no para-além, só posso tomar o meu lugar dentre os mortos.

Ou seja, a meu ver, eu não vou discorrer mais acerca do mascarado, pois Lacan vai justamente articular o mascarado não ao Nome-do-Pai, mas a uma presença real, à qual vai chamar de nome do nome do nome. O mascarado se oferece como orientação, mas não como orientação paterna, para tirar o Melchior, o vivo, da ilusão de tomar a palavra dentre os mortos, tal como fez seu amigo. O que está ali, como homem mascarado, é justamente uma outra orientação, que não a orientação paterna. E aí Lacan vai fazer uma referência à Deusa branca, de Robert Graves, sobre a qual eu poderia falar aqui durante uma semana… Li esse livro recentemente, para tentar entender um pouco essa questão do nome do nome do nome, mas não vou entrar neste ponto. Resumindo, esse homem mascarado pode ser, propriamente, o lugar da Mulher que não existe. Ele pode ser propriamente um dos nomes do real. O nome do nome do nome como um dos nomes do real, que orienta o sujeito para além do Nome-do-Pai. E, sublinhando que aquele que não se arrisca ao ato é propriamente o tolo, é propriamente o que erra, justamente por não ser tolo do ato, não ser tolo de alguma coisa que, eu diria, seria própria à condição da vida.

Muito bem. Então, com essas três referências – Hans, Gide e O Despertar da Primavera -, vou começar a concluir. Já se esboça alguma coisa que eu poderia colocar como resposta à pergunta “o que há de real na adolescência?”, para além do fato de ela ser uma construção, para além do fato de ela ser marcada, em seu início, pelas transformações do corpo ocorridas na puberdade. O que há de real e de que maneira nossos adolescentes podem responder a esse real, na medida em que o orientador fundamental, que era o Nome-do-Pai, não funciona mais como um orientador? Então, o homem mascarado pode surgir para os nossos adolescentes, para evitar que eles tomem a palavra dentre os mortos. Esse texto de Lacan, sobre O Despertar da Primavera, a meu ver, é um texto fundamental para que possamos estudar todas essas questões da adolescência e da clínica da adolescência, se a gente pode dizer assim.

Esse esboço de resposta eu encontrei no próprio Miller, pelo menos na leitura que faço dele quando  o isola em um tópico desse texto como o problema do corpo do Outro. Ele retoma Freud, quando Freud fala das metamorfoses da puberdade, e retoma Lacan quando afirma que não se chega a gozar do corpo do Outro, tal como Freud propunha. Ele diz que é justamente pela falência do Nome-do-Pai – não da inexistência do Nome-do-Pai, mas de uma certa ineficácia do Nome-do-Pai nos nossos dias – em fazer a aliança entre a pulsão e a identificação (porque era justamente isto que dava o estatuto de homem e de mulher àquele que saía da adolescência: “agora eu sou um homem”, conceito de passagem, por exemplo nos ritos de passagem que diziam o que era ser um homem e o que era ser uma mulher a partir daí). Ele fala, inclusive, da precocidade sexual. Mas, se o Nome-do-Pai funcionava como um orientador – e podemos pegar vários aspectos desse orientador, um deles é o rito de passagem – e isto não funciona mais, o que pode orientar? O que pode produzir essa nova aliança entre a pulsão e a identificação? E uma nova aliança que não seja reduzida à sublimação, pois a sublimação não resolve o problema da pulsão. A sublimação não satisfaz a pulsão. Então, o que ele nos aponta?

Surpreendentemente, ele diz que o islã é uma boa solução porque não é a religião do Pai. O islã é a religião do Um (acerca do qual ele dá um curso, “O Ser e o Um”, retomando o Seminário 19 de Lacan, no qual ele diz: “yad’lun”, “há um”. Miller diz que o Islã é a religião do Um e a religião do Um coloca as coisas em seus devidos lugares. É uma religião que opera a partir da não-relação sexual porque diz o que é um homem, o que é uma mulher, praticamente sem ambiguidades. E, portanto, o problema do corpo do Outro, para a religião do Um, é uma questão que não se coloca. O problema do corpo do Outro, o que fazer com o corpo do Outro, ali se sabe o que fazer com o corpo do Outro: as relações sexuais são proibidas antes do casamento, pronto. Não tem “senão”. E sendo o Islã uma religião do Um, não é a religião do Pai. Uma religião do Pai traz o filho como seu representante e aí ele brinca, tem historinhas de que o pai abandonou o filho e de que mamãe etc. etc. Tem toda a família, inclusive a Sagrada Família, na qual se baseou a tradição judaico-cristã.

O Islã é diferente. Miller considera que, com essa maneira, digamos, de conceber o humano, o Islã propõe uma aliança de identificação com a pulsão de modo não-ambivalente. O que é homem, é homem; o que é mulher, é mulher. Ponto.

Miller faz uma diferenciação importante, e de um modo muito preciso. Ele diz que o Islã veio se alojar no lugar onde o Nome-do-Pai falhou no Ocidente. Se o Ocidente viveu, foi porque estruturou seu modo de existência a partir da tradição judaico-cristã, que é uma religião do Pai. Miller faz uma dialética entre o fracasso da religião no Ocidente e o triunfo do Islamismo. Se isso se tornou um lugar vazio, o Islã veio ocupar esse lugar no Ocidente, como sendo a religião do Um. E isto é um convite para quem está sem orientação, evidentemente, para quem é errante. O Estado Islâmico, em sendo um desvio, ao aniquilar diferença, oferece justamente uma solução pela via da violência. Isto seria, talvez, contrário ao próprio Islã que, em última instância, é a religião da diferença, do Um absoluto. Então, sem dúvida nenhuma, e o Estado Islâmico aparece como a solução sintomática em relação ao próprio Islã.

No site do XXI Encontro Brasileiro há um texto de Lucíola Macedo[3] , cuja leitura também recomendo, pois faz uma discussão excelente sobre a questão do desenraizamento, que está relacionada a isto. Em algum momento a gente também pode falar em errância. O que poderia servir a esses adolescentes desenraizados, ou desorientados, ou errantes, para que se dê essa nova aliança entre a pulsão e a identificação? Esta é a questão da adolescência. E Miller diz que o Islã é um prato cheio para isto. E, por outro lado, o Estado Islâmico. O Estado Islâmico produz, com toda a sua violência, uma (ele usa o termo) “aliança”, mesmo. Esse desvio do Islã oferece uma aliança entre a pulsão e a identificação através da violência. Ele escreve isso de maneira muito simples, a partir da estrutura dos discursos, situando onde está a vítima e onde está o carrasco, servindo à vontade de gozo do Outro.

Deste modo o Islã, nesse aspecto, faz a apologia do narcisismo da causa do infante. Triunfa, justamente porque produz a aliança entre a identificação e a pulsão, enquanto o Ocidente fracassa, justamente porque aquilo que produzia essa aliança, que era um semblante, o Nome-do-Pai, não serve mais para isto. Então, a clínica com os adolescentes, escutar os adolescentes, nos impõe essa questão. O que a psicanálise pode produzir, em termos de resultado propriamente dito, que pode fazer com que haja essa aliança entre a pulsão e a identificação e que não seja uma saída pela violência? Pois a saída pela violência é uma das soluções. Que outras soluções cada um desses nossos adolescentes pode encontrar a partir da psicanálise?

 

 


* Atividade preparatória para as Jornadas da EBP-SP 2016 e para o XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, realizada na Seção SP, em 07/06/16. Transcrição de Fernanda Turbat e Gabriela Malvezzi. Estabelecimento do texto: Teresinha N. M. Prado.
[1] Lacan, J. (1998). “Juventude de Gide”. In Escritos. Rio de Janeiro: Zahar.
[2] Disponível em http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero17/texto1.html
[3]  Macedo, Lucíola F. (2016). “Juventude e trauma: a experiência de desenraizamento”. Disponível em:http://www.encontrobrasileiro2016.org/#!juventude-e-trauma/y92dz
Back To Top