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Meninos e Guillaume, à mesa!, um filme de Guillaume Galienne
A primeira lembrança que tenho da minha mãe é quando eu tinha quatro ou cinco anos. Ela chamava, meus dois irmãos e eu para o jantar, dizendo: “Meninos e Guillaume, o jantar está servido!”* e da última vez que eu falei com ela por telefone, ela desligou dizendo “Um beijo, querida! Podemos dizer que entre estas duas frases, há alguns mal-entendidos.
O filme Les garçons et Guillaume, à table!, em português traduzido por Eu, Mamãe e os Meninos, é a história de vida do diretor e ator do filme Guillaume Galienne e a maneira como ele virou ator, imitando a sua mãe:
– “Quando eu era criança, minha mãe dizia: « Os meninos e Guillaume». Este “e” me fazia acreditar que para continuar único aos olhos desta Mamãe, para me distinguir da massa anônima que eram os meninos, eu precisava sobretudo não ser um. Eu fiz de tudo para ser uma menina, então, e qual o melhor modelo para isso do que minha mãe? Assim, comecei a imitá-la e pouco tempo depois adotei a mesma voz, os mesmos gestos, as mesmas expressões. Eu não virei afeminado, mas feminino me apropriando de Mamãe.”
Este relato autobiográfico do próprio realizador do filme nos deixa entrever este lapso de tempo entre a infância e adolescência do personagem/ator Guillaume e a construção que este vai fazendo frente ao sexual.
Para sair da lógica universal e não ser incluído entre os homens da série – os dois irmãos e o pai – e ser amado de forma Única, Guillaume se aloja na identificação com o feminino.
A mãe, que não cede em momento algum ao desejo de ter tido uma filha mulher, faz de Guillaume seu verdadeiro objeto. Guillaume consente, “crendo” ter algo de menina, e mais do que isso – faz um esforço para ser feminino – em última instância, para corresponder o desejo da mãe.
– Mamãe, encontrei a minha primeira namoradinha da infância. Lembra da Ana?
– Sim, como ele vai?
O filho responde hesitando, – vai bem! Não ousando contradizer a mãe dizendo que, na verdade, Ana, a namoradinha de infância, era uma menina!
A conversa segue….
– “Você não é esportista como seu pai e os meninos, não pode, portanto, acompanhá-los nas viagens de verão para lugares selvagens”.
Oferece, então, ao filho, um curso de espanhol durante as férias de verão, na cidade ‘mais feia’ da Espanha.
A cidade mais feia, a fim de não fazer concorrência com a própria mãe, que queria ser ‘A mais bela’. Um tom de inveja e de ciúmes, marcas de fábrica da fantasia feminina, ficam evidentes em alguns momentos do filme.
Uma mãe devoradora, que não se limita a satisfazer-se em chamar Guillaume e seus meninos a passar à mesa, mas a mordiscar-lhe pouco a pouco a masculinidade.
É isto que é posto à mesa neste filme! Um filme sobre a (impossibilidade da) identidade de gênero e a identificação com o feminino da mãe, que lhe serve de bússola, mas que fracassa. O filme também retrata como se dá a construção da sexuação para este filho, apesar desta Mulher.
É um filme sobre a construção e desconstrução da sexualidade no decorrer da vida; da infância – onde não é contado na série dos homens amados pela mãe e as consequências do recalque para o pequeno garoto; da adolescência – este menino estranho que fora marcado pela homossexualidade forçada para dar continuidade à sua posição, a de se manter como falo da mãe; à idade adulta, onde o gozo enfim em relevo desmascara todo o esforço da vida de Guillaume: corresponder ao desejo do Outro ao preço de fazer-se devorar (o próprio falo).
A ser degustado à luz da psicanálise lacaniana, esperando que sua apreciação nos oriente frente aos embaraços do corpo. Pois, diante da pulsão, acéfala, o corpo “se goza” e se releva do Um, contrariamente ao desejo, que é sempre desejo do Outro, nos lembra Miller[i]
Será que Guillaume poderá ainda sustentar o desejo de Mamãe, ao se enfrentar com este corpo masculino, passados os percalços da adolescência?!
Fernanda Turbat (Comissão de boletins)
* Filme vencedor do melhor filme e melhor ator do festival de Cannes de 2013.
[i] Miller, J.A. [25/05/11]. “A orientação lacaniana. O Ser e o Um”, ensino pronunciado no departamento de psicanálise na universidade Paris VIII, lição do dia 25 de maio de 2011, inédito.