BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
INTERVENÇÃO SOBRE O VETOR: “O GOZO QUE NÃO MENTE É O GOZO COMO TAL?”
Fernando Prota
Membro da EBP e da AMP
O vetor que me foi solicitado trabalhar foi: “O gozo que não mente é o gozo como tal?”. A formatação da frase nos remete à citação de Miller sobre o último ensino de Lacan, a qual se apresenta no próprio argumento no terceiro parágrafo: “o gozo feminino, esse que é concebido ‘como princípio do regime do gozo como tal (…) reduzido ao acontecimento de corpo’”[1]. Então, esta pergunta assim formulada no argumento, associa o “gozo que não mente” ao gozo feminino.
Gostaria de me ater às palavras, digamos, “menos fortes” desta citação. Na primeira parte temos “princípio do regime”. A inclusão da palavra “princípio”, introduz uma distância epistêmica prudente quanto a uma possível imaginarizacão do gozo como tal[2]. Já o termo regime implica que podemos estabelecer um modo de acontecer, um modo de existir do gozo feminino, o qual pode ser apreendido em um processo de análise. Miller deixa claro que foi avançando em relação ao gozo feminino que Lacan pôde formular a ideia de Sinthoma: “No fundo, foi por ter generalizado essa fórmula do gozo feminino que Lacan pôde extrair alguma coisa a qual chamou de sinthoma”[3].
Na segunda parte da citação temos “acontecimento de corpo”. Quero me ater mais na questão do acontecimento do que do corpo. Lacan define o sintoma como “um acontecimento de corpo” em seu texto “Joyce o Sintoma”, de 1976. É a única vez que surge a expressão, mas J.-A. Miller a extraiu para fazer dela uma noção-chave do último ensino de Lacan[4]. Acontecimento de corpo não é simplesmente algo que ocorre com o corpo, mas especificamente algo que testemunha do choque traumático do significante com o corpo. O valor de acontecimento de corpo de determinada experiência se dará na análise uma vez que ela testemunhe do excesso produzido por esse choque não absorvido pelo simbólico[5]. Excesso que será contingente e singular à maneira de cada sujeito sofrer e gozar[6].
Pensar no gozo feminino como gozo que não mente, como está no argumento, me envia diretamente à ideia de “orientação”. A rigor, não haveria porque falar em gozo que não mente, pois o campo próprio ao gozo não é o da mentira/verdade, mas o da existência. O gozo, como tal, ex-siste. Se o tomamos como “gozo que não mente”, já introduzimos aí uma leitura e um parceiro leitor, uma instância que frente a esta existência introduz uma dimensão do “deixar-se levar ou não”, tomar ou não esse gozo como um orientador, como algo “confiável”. Trata-se da função do analista.
A questão a que esse vetor do argumento me envia é: o quanto nos deixamos orientar pelo gozo feminino em nossa prática? A dimensão da verdade não relacionada a um conteúdo, a um suposto referente, mas relacionada a esse orientador. Essa me parece ser uma questão a ser explorada em nossas mesas simultâneas nas Jornadas: como cada um de nós, como praticantes, reconhecemos o que é da ordem do gozo feminino em cada caso e como nos deixamos guiar por ele? Como o tomamos como um gozo que não mente?
Trata-se então de poder orientar-se pelo gozo feminino, o qual se relaciona ao acontecimento de corpo. Assim, trago uma pequena vinheta em que busco seguir a trilha dos princípios do acontecimento de corpo: Contingência (imprevisto) / Iteração / Vazio (furo)[7].
Luiza aguarda ser chamada para a sessão. Por equivoco chamo o analisante que deveria entrar depois dela. Ela resta, preterida. Quando este sai, ao ser chamada, bate sua coxa no braço da cadeira. A dor sentida produz um efeito corporal inquietante e que a leva imediatamente à lembrança de ser exatamente ali, naquela coxa, que ela por muitas vezes apanhava da mãe psicótica, surras que iam muito além da relação causal com algo que ela tivesse feito. A marca de um gozo insensato que incide sobre seu corpo e causa seu próprio gozo, o qual, organizado pela via fantasmática a partir de palavras agregadas pela mãe a estas cenas, traçou determinado destino.
Neste momento, Luiza não se deixou enredar mais uma vez pela significação impressa pelo fantasma da preterida, não amada, que poderia ter sido reatualizada via amor transferencial. Ela consente com a contingência do choque com a cadeira, claramente um choque significante, e algo da iteração do gozo que há muito escorre pelas brechas do seu discurso organizado pelo fantasma, se apresenta circunscrito. A cena fantasmática em si não lhe era novidade, o novo foi que algo do seu corpo toma prevalência neste gozo e não o Outro. Neste momento não se dedica a compreender o incompressível do gozo materno, o qual é perfurado pela assunção da singularidade de um gozo que se marca em seu corpo. Um novo tempo se inaugura em seu processo de análise.
Nesta pequena vinheta, contingência e iteração se conectam num acontecimento de corpo. O regime da surpresa ou do inesperado é fundamental na dimensão do acontecimento, entretanto uma certa repetição, estabelecida na dinâmica transferencial, é fundamental para que algo possa aí aparecer como irrupção. Aquilo que itera se apresenta naquilo que repete, sem se confundir com ele[8]. Foi na repetição que Freud pôde escutar a pulsão de morte em Além do princípio do prazer. De que modo escutarmos e nos deixarmos orientar pelo que itera no que se repete pode permitir um outro fazer com o gozo mortífero?
Talvez não seja fácil captar a dimensão do furo aqui nesta vinheta, pois a experiência que circunscreve o gozo a uma região do corpo e sua emolduração pela cena fantasmática recobrem a experiência da iteração. Onde aí o não-todo? Onde o sem limite, a infinitização própria ao furo? No caso, a circunscrição do gozo, ao condensá-lo numa parte do corpo, é aquilo que faz borda e permite ao vazio apresentar-se como “conjunto vazio”. Isso tem efeitos. Trata-se de borda e não de origem. Como nos adverte Anne Lyzy: Não nos deixemos obcecar pelo acontecimento de corpo “na origem”[9].
Pode-se captar o efeito de furo que o consentimento à iteração apresenta na organização fantasmática, ao permitir que, a partir do gozo do corpo próprio que se “Outropõe”[10], o sujeito experimente um afastamento da sua posição de objeto no fantasma que fazia consistir o gozo do Outro materno. A possibilidade de sustentar um furo no Simbólico; não mais tamponar o Outro fornecendo sentidos.
E, para além disso, o murmúrio próprio ao turbilhão que consiste o furo como algo de um corpo vivo[11], fluxo que mantem o furo enquanto tal (essa pode ser uma forma dinâmica de entender a tal reta infinita) que antes se fazia audível apenas enquanto um pano de fundo da organização fantasmática – e por vezes se apresentava ruidosamente em sua faceta de devastação – a partir de então, devido ao consentimento do sujeito ao acontecimento, pôde se fazer letra a ser lida em análise.
Ram Mandil, em seu relato de passe, diz assim sobre acontecimento de corpo: “acontecimento de corpo toma a forma do vazio e do saco (de “um saco furado”), que poderia se escrever com o símbolo {ф} – símbolo do conjunto vazio, do vazio como subconjunto –, traço, marca, letra, ou ainda como S1 referido a esse gozo produzido pelo choque entre a língua e o corpo”[12]. Trata-se, então, do traço da inscrição de um vazio no corpo.