ACERVO VIVO CONVIDA Fabiola Ramon (Diretora de Biblioteca EBP-SP, 2021-2023) Um convite foi lançado para…
Caligrafia – desejo do analista
Emelice Prado Bagnola (integrante da comissão de Biblioteca da EBP-SP)
“A vida é uma só.
A sua vida continua na vida que você viveu.”
Manuel Bandeira[1]
Sinto-me feliz pela oportunidade de compartilhar com vocês os efeitos iniciais da construção que abre a cada volta, diferentes maneiras de pensar e conhecer o trabalho realizado por uma comissão de biblioteca no fazer cotidiano da Seção São Paulo.
Recebi o convite para estar envolvida com o trabalho da biblioteca através de sua atual diretora, Fabíola Ramon (EBP/AMP) (gestão 2021-2023). A princípio, me pareceu uma oportunidade singular, no contexto nacional, o convite para estar com os livros, o que confirma mais uma vez, os caminhos para onde a psicanálise pode nos levar.
Na subdivisão da tarefa desta comissão, parte estaria dedicada a sustentar a atividade “Leituras de biblioteca” e a outra parte com a recepção de mil quinhentos e vinte títulos doados pela família de Carlos Augusto Nicéas* para a Escola Brasileira de Psicanálise.
Logo o trabalho da comissão de biblioteca na gestão anterior se fez notar. Os livros agora distribuídos como uma moldura no auditório marcado pelos encontros das quartas-feiras.
Do movimento de aproximação geográfica e política com os livros, formulei uma pergunta: qual o lugar e os interesses que reúnem os livros em uma biblioteca no trabalho da Escola?
Contornados pelo ambiente virtual, foi preciso inventar uma forma de trabalho com o acervo. Iniciamos um intercâmbio de fotografias dos livros recebidos, bem como das revistas nacionais e internacionais, com ênfase aos títulos e sumários gentilmente reunidos por Felipe Salles, bibliotecário da Seção.
Pouco a pouco se fez notar em cada integrante ali envolvido, a escolha particularizada por um livro e assim circunscrever o tema de trabalho em causa, o que nos levou para a primeira conversação animada por Heloisa Prado Telles (EBP/AMP) e o bibliotecário da EBPSP, Felipe Salles. Esse exercício frutificou, ganhou corpo e se transformou em uma noite intitulada: “O acervo e o percurso de um analista”. Atividade da diretoria de biblioteca que vocês poderão acompanhar as ressonâncias através do podcast Bibliô Ecos de 28 de abril de 2022[2].
O primeiro efeito eu recolhi desta maneira. O acervo Nicéas operou um s2 sobre um s1 (acervo Nicéas/acervo Seção SP) e despertou em mim, um interesse para conhecer o acervo da Seção, os caminhos de sua constituição, a sua história de formação através do trabalho realizado a cada diretoria, a entrada e saída de seus títulos, bem como a transmissão dos analistas ali presentes através das publicações do Campo Freudiano.
A visita ao acervo da Seção elucidou as coordenadas iniciais desta construção e agora marcam a passagem feita de um acervo pessoal para um acervo institucional.
A partir deste momento interessou-me compreender melhor os conceitos da biblioteconomia como o de extroversão do acervo, marginália e política de crescimento zero.
As noites da Biblioteca podem ser consideradas ações de extroversão do acervo. Trata-se desta ação que conecta com o fora, com a cidade. O livro ganha a cena na atividade que convida e anima leitores interessados.
Marginália, segundo o dicionário da língua portuguesa é um conjunto de notas inseridas nas margens de um caderno, manuscrito ou jornal. Esse conceito me reenviou para a psicanálise.
O que se lê na margem encontro na nota de rodapé do Livro dos Sonhos, capítulo VII, sobre a particularidade do esquecimento dos sonhos. Freud através da pergunta sobre a função do elemento misterioso do sonho zela para que este não lhe escape das mãos, uma vez que lhe parece ser este o objeto cujo valor se propõe a determinar e que por sua vez marca algo que se satisfaz.
O conteúdo inconsciente destacado com o acento dado ao significante canal: “talvez outro livro em que aparece um canal, alguma coisa relacionada a canal… ela não sabe ao certo… não está claro”[3].
Portanto, aqui o significante canal foge da interpretação, imprime enigma para o sujeito, escapa da via do sentido e aponta para uma posição: “um ceticismo que, nela, se oculta por trás de uma insistente admiração”[4]. Repetição de satisfação fora do lugar próprio?
É neste ponto que me detenho à caligrafia do Leitor Nicéas que encontro margeando um livro que escolhi abrir. Ele sublinha, circula, rabisca, pontua em exclamação, e com frequência interroga. Ora escreve em sua língua materna, ora em francês e explora as homofonias. Impossível não experimentar a presença e o valor de um Ato que afeta o corpo do falasser.
Impedidos da presença dos corpos e inventando um trabalho através das correspondências, recordo o valor do escrito na construção clínica para Freud do caso Schreber e para Lacan o seu encontro com o escritor Joyce.
Por um instante, questiono se teria ali podido localizar uma transmissão que não guarda qualquer relação com uma intenção e sim com o desejo, o desejo do analista que desperta a operação analítica como diz Miller[5] e me permite cernir de modo sutil e delicado através da letra o que quer dizer: “sujeito suposto saber ler”[6].
Carlos Augusto Nicéias, presente em sua caligrafia, me faz “querer ir ver o que eles dizem”[7] como sublinha Judith Miller sobre o trabalho das bibliotecas e desta maneira ilumina o vivo, índice da política de construção permanente e inacabada onde se desenrola um trabalho de Escola.