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A violência daquilo que não se consegue colocar em palavras
Nas Jornadas da EBP-SP – Infância e Adolescência: impasses e saídas teremos a possibilidade de discutir o que tem acontecido com crianças e adolescentes na sociedade atual, aprofundando essas discussões.
Contudo, como trabalho com psicanálise e sociedade e psicanálise e cultura, além da clínica, creio ser interessante, nos textos preliminares, discutirmos um sintoma da cultura contemporânea: a violência entre os jovens.
Imediatamente a cada caso que surge, aparecem questões: O que aconteceu? Por que ocorreu? Podia ser evitado? São tentativas de dar sentido ao inesperado que sempre nos escapa.
Estamos frente a uma violência inusitada que se apresenta como um sintoma social da nossa época, desvelando o impacto da pulsão de morte nas ações dos sujeitos. Eric Laurent[1] nos explicita que estamos diante de dois tipos de violência: a privada e individualizada e aquela que pode atingir um grande número de pessoas. Por exemplo, nos Estados Unidos ela apresenta a face de uma violência privada e individualizada. E, no Brasil, mais recentemente, vivenciamos uma violência mais centrada nas massas, nas reações de grupos, que atacam, destroem, revidam.
Nos dois casos, nos parece lapidar o filme Precisamos falar sobre Kevin, estratégico para discutirmos alguns desses temas.
O livro: uma história individualizada
Trata-se de um romance de ficção publicado em 2003 e escrito por Lionel Shriver, uma autora que nasceu em 18 de maio de 1957, em Gastonia, na Carolina do Norte (EUA).
Em 2011 o romance foi adaptado para o cinema pela realizadora escocesa Lynne Ramsay. Ele foi filmado em Nova York e Stanford, em Connecticut, nos Estados Unidos, ganhando vários prêmios.
É interessante observar que o livro descreve uma situação hipotética: a de um massacre realizado por um adolescente que matou sete colegas de escola, uma professora, uma servente, seu pai e sua irmã. Uma história criada como produto dos encontros que a autora teve com mães de adolescentes assassinos. Desta forma, pode-se dizer que Kevin representa as múltiplas faces de inúmeros relatos, possibilitando desvelar as novas formas com que a sociedade atual tem vivido a pulsão de morte.
O filme começa no momento “atual” e vai em direção ao passado. Ele é um apanhado de memórias: o nascimento, as dificuldades da relação mãe e filho, as relações com o pai, a irmã etc. Um caleidoscópio que vai sendo montado aos poucos.
Quem foi Kevin? Ele é um produto de uma história. Podemos perceber em inúmeros momentos os meandros da montagem real, simbólica e imaginária. A mãe de Kevin – Eva – não queria ter filhos. Nos momentos iniciais ela se banha na tomatina, uma festa em que as pessoas se mesclam com tomates amassados. O vermelho predomina e ela se banha nele.
Pouco depois ela transa com o pai de Kevin e deixa que ele goze nela sem proteção. Nas cenas seguintes vemos a criança chorando o tempo todo nos braços da mãe. Só com o pai ele consegue parar.
Eva constata a cada momento que seu filho é diferente. Ele não fala com ela, não se relaciona, deixando-a sempre de lado, só se interessando pela história com flechas que depois desempenhará um papel estratégico no filme.
O pai acompanha os seus gostos, fazendo aparentemente tudo por Kevin. Ele lhe dá um jogo de flechas de brinquedo e depois um jogo profissional de arco e flechas. Gradativamente Kevin inicia um amplo processo de destruição. Ele destrói, com fezes, a sala de descanso da mãe; atira uma flecha no olho da irmã, deixando-a cega de uma vista. E a ligação com sua mãe vai se tornando cada vez mais uma relação de ódio.
No único momento em que Kevin obtém uma reação mais vigorosa da mãe: ela acaba quebrando o seu braço. Mais tarde, ele revela, no corpo, as marcas desse processo, marcas que ele continuamente cutuca, para mantê-las à mostra. Nesse momento ele cobra da mãe que ela deveria tê-lo coibido.
Eric Laurent nos possibilita uma pequena compreensão desse processo. Ele destaca que “(…) existem novas formas, ou seja, não podemos pensar que se trata da violência de sempre, da pulsão de morte de sempre, etc. Não, cada vez mais, existem formas efetivamente novas, as quais é necessário explorar”[2].
É acerca dessa violência nova que precisamos discutir. Uma violência que se apresenta sob formas distintas como o massacre inesperado das pessoas, os estupros coletivos etc.; que não se apresentam escondidos, sendo expostos nas mídias eletrônicas e televisivas.
A questão da palavra e da violência
Durante muito tempo pensou-se que seria possível lidar com a violência através da palavra. Ou seja, a ideia de que através dela seria possível diluir a violência de alguma forma.
A segunda clínica de Lacan tem sido pensada a partir de novos parâmetros. Da clínica lacaniana centrada no Nome-do-Pai e da ordem simbólica mais consistente, passamos para a clínica da inconsistência do Outro. O que se altera é a maneira como o sujeito constrói uma resposta para a sua existência[3].
A resposta que alguns adolescentes trazem é da pulsão de morte declarada, vivida a cada dia, a cada passo, o que pode levá-los à morte, a sua ou a de outros, assim como ao estupro do outro.
Eric Laurent nos alerta que muitas vezes acreditamos que é possível evitar a violência, que ao falar se evita que ela aconteça. “Não estou tão seguro disso, a meu ver, trata-se de uma relação mais complexa, entre o que é o tratamento simbólico de um real que passa não somente por palavras, mas por toda a classe de dispositivos”[4].
Há um ódio ao Outro/outros que Kevin apresenta em relação a sua mãe, irmão, pai, colegas, professora e servente; um ódio que ele não coloca em palavras. Ele precisa destruir a todos. Há um momento em que agradece depois de ter cometido os crimes, como se ele estivesse agradecendo os aplausos da plateia.
O outro não ocupa nestes casos o lugar de uma identificação possível. Veras revela que “o genocídio será mais bem executado na medida em que a culpabilidade for esvaziada do processo”[5].
É sobre esse esvaziamento da culpabilidade que nos alerta Veras e o que nos tem chamado a atenção é que ele está presente em inúmeros atos dos jovens atuais.
A cultura do estupro
Recentemente têm aparecido nos jornais e revistas casos de estupro em que o sujeito que realiza a ação “não se lembra de tê-lo feito”. Ou até mesmo se sente engrandecido, como Kevin, pelo ato realizado. É o caso do jovem estuprador que diz ao amigo que ele “é mais importante que a Dilma”.
Surgem propostas de cartilhas de como se deve ensinar as crianças a respeito da violência e dos estupros, principalmente aqueles que ocorrem nas escolas.
O que não se percebe é que, havendo um esvaziamento do Outro, em que ele vai se tornando cada vez mais inconsistente, a culpabilidade também desaparece.
O que se destaca é um ódio ao Outro/outro que aparece sob a forma de deboche, de apresentá-lo nas mídias eletrônicas em situação de ridículo, transformando-o em um objeto do qual se goza do modo que quiser.
As mulheres têm reagido a isso em várias passeatas pelo Brasil. Em uma das frases exibidas em uma recente manifestação, havia um cartaz que dizia: “Estupro não é sexo”.
Isto nos faz levantar a questão: O que é sexo para os jovens de hoje? Por que ele tem se tornado tão violento? São muitas as questões a investigar.
A psicanálise tem muito a contribuir para o esclarecimento daquilo que não se coloca em palavras. Como revela Veras é ela que “tem o poder transformador de restaurar uma erótica onde vigora apenas o gozo obsceno”[6].
Por Leny Magalhães Mrech (comissão científica)