BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
A MENTIRA VERÍDICA, O EU IDEAL E A INTERPRETAÇÃO
Cristiana Chacon Gallo
Membro da EBP e da AMP
Partindo do Eixo 3 de nossas Jornadas, gostaria de explorar o “ponto desde o qual uma verdade se produz”, tal como apresentado por Lacan no Seminário 11, ao abordar o seu esquema ótico.
Este esquema torna claro – […] – que ali onde o sujeito se vê, isto é, onde se forja essa imagem real e invertida de seu próprio corpo que é dado no esquema do eu, não é lá de onde ele se olha.
Mas, certamente, é no espaço do Outro (A) que ele se vê, e o ponto de onde ele se olha também está nesse espaço. Ora, é bem aqui também que está o ponto de onde ele fala, pois, no que ele fala, é no lugar do Outro (A) que ele começa a constituir essa mentira verídica pela qual tem começo aquilo que participa do desejo no nível inconsciente.[1]
Neste ponto em que imagem e fala se conjugam, o circuito da pulsão escópica se revela aí também em jogo – em termos freudianos se destaca a atividade-passividade implicada no ver e ser visto, que se desdobra no “se fazer ver”[2] e leva a “perceber que a pulsão é sempre ativa.”[3]
Apontar para o circuito pulsional na constituição da mentira verídica neste ponto de partida comum da imagem e da linguagem – em que a fala que veiculará os significantes do Outro se conjuga à captura por uma imagem de si enquanto eu ideal – descreve um exercício que pareceu interessante realizar, indo do estádio do espelho a este esquema ótico e levantando questões que encontrarão melhor esclarecimento a partir da lógica dos nós.
A possível articulação entre a mentira verídica e o que Lacan apresentará mais tarde como a “impotência da verdade” frente ao impossível de decifrar no sintoma, despertou um maior interesse no imaginário “conservado” nos restos sintomáticos, a que uma análise que dura se destina.
Neste sentido, uma questão trazida por Brousse permitiu melhor circunscrever este ponto de interesse:
O Seminário 23 permite fazer uma hipótese: esses elementos, cristais do imaginário, indeléveis ao processo analítico, conservando uma referência ao corpo e à sua imagem, não poderiam ser considerados como o núcleo do ego? […] Estas cenas, efetivamente, apresentam a imagem, o corpo, fora de toda perspectiva totalizante, mas, por outro lado, não sem relação com o circuito do gozo. Isto dá também uma pista para responder à questão do futuro do narcisismo num tratamento levado a seu termo.[4]
Em outro momento, Brousse apontou para “o poder de uma imagem como real” uma vez que “por ser uma imagem, ela não deixa de ter consequências reais”[5], tal como entendo a da destinação de um corpo: um possível sobre o fundo de um impossível de dizer acerca do gozo que escapa à imagem, não sendo apreensível no espelho, uma vez que se encontra no circuito descrito em torno do objeto enquanto não especularizável.
Imagem articulada aos significantes mestres e sobre a qual a interpretação poderá incidir, vindo a produzir ressonâncias no corpo enquanto suporte do gozo aí implicado.
Silvia Salman, no relato do final de sua análise, apresenta uma “interpretação contratransferencial”[6] do analista que produz um efeito imediato de fuga e, na sequência, efeitos de esclarecimento da “gramática pulsional”[7] e o próprio “abalo libidinal”[8].
Em um gesto surpreendente, o analista “agarra” o ponto de junção entre uma imagem de si para o Outro, nomeada como “desenho animado”, e a satisfação pulsional implicada em se fazer fugidia – “um corpo que escapole, que não pode ser agarrado já que não se trata de um corpo de carne e osso, mas de um desenho.”[9]
Nas palavras de Silvia Salman, a partir deste ponto a análise caminhou em direção ao desinvestimento da via significante e do sentido, articulada ao “desenho animado”, seguindo por “uma lógica encarnada” e a sua saída da análise.