A Fonte (1919), Marcel Duchamp. Flavia Corpas Coordenadora da Comissão de Arte e Cultura das…
A “menina da meia”, um precioso conto búlgaro
Na atividade inaugural da EBP-SP de 2016, Carlos Augusto Nicéas, em impecável conferência, referiu-se em determinado momento ao acontecimento de corpo, dizendo: “Não é qualquer coisa. É um dizer do analista que faz ressoar algo no corpo do analisante”. Também se referiu ao acontecimento do passe como “O dizer de um só”, enfatizando ser dos testemunhos dos AE que se espera um ensino sobre o mistério da junção entre palavra e corpo.
Dos comentários da plateia, destaco o de Maria do Carmo Dias Batista, por ter colocado uma questão sobre a disjunção entre sujeito e falasser em relação ao acontecimento do corpo, que me fez lembrar da conferência de Daniel Roy “Uma história de encontros”, pronunciada na ELP,que mostra que a clínica com crianças também pode-nos ensinar sobre essa questão.
Na mencionada conferência, apresentam-se vários casos de crianças acolhidas em instituições na Bulgária no “Crianças sem pais”, um dispositivo para uma clínica do desamparo.
Dentre eles, destaco um fragmento do caso de uma menina de três anos e meio que apresenta quadro de hospitalismo grave. Não consegue dormir, nem de boca para cima, nem de boca para baixo. Fica de joelhos. Emite gritos irregulares. Reage quando é mudada de lugar, ficando inerte e colada ao piso. Não quer comer com colher. Dá as costas a todo mundo, sem preferência por nenhum adulto ou criança. Seu estranho partenaire é o piso.
A educadora Erma a encontra nesse momento. Surge uma primeira nomeação: a menina do olhar de aço. A educadora entende algo formidável: ao redor da menina do olhar de aço há um perímetro de um metro e é preciso se situar na nessa fronteira para falar com ela. É nessa fronteira que a educadora se coloca para apresentar-lhe a comida e os novos objetos. Desta forma, aos poucos a menina aceita o que a educadora lhe propõe no piso e começa a adotar um ritmo com os acontecimentos ao redor desse perímetro.
Um mês depois, a menina inventa um jogo particular: pega uma meia, faz cair e antes de que caia ao chão, agarra-a. A partir disso, uma nova nomeação: a menina da meia. A educadora começa a introduzir outros objetos entre a menina e a meia, e é ela, a educadora, quem pega a meia no jogo, antes que caia ao chão. Assim, a menina aceita que a educadora entre em seu círculo no momento do deixar cair.
A meia era a menina. O relato da educadora lembra que tempos atrás ela havia caído e quebrado um braço, o que fez com que todos prestassem mais atenção nela. A educadora introduz um pequeno espelho e o balança, de forma que a imagem da menina apareça e desapareça. A menina começa a vocalizar e suspirar. Ela se faz aparecer e desaparecer com júbilo, e finalmente apresenta a meia diante do espelho.
Este fragmento ensina, a meu ver, algo do que podemos considerar um acontecimento do corpo do falasser, quando ainda não adveio um sujeito. Algo do dizer da educadora ressoa no corpo da menina e a faz vocalizar, suspirar e sorrir diante da própria imagem pela primeira vez. Entendo que nos ensina algo do mistério da junção entre lalíngua e corpo.
Assim como em um testemunho de AE há “O dizer de um só”, não sem outros, podemos acrescentar que no caso dessas crianças há, como ensina Daniel Roy, crianças sem pai, mas não sem outros. É esse laço com um Outro que permite à criança separar-se do seu ser de objeto para que possa advir um sujeito da palavra.
É um exemplo preciso e precioso do que podemos considerar “bem dizer o falasser”.