Emelice Prado Bagnola (integrante da comissão de Biblioteca da EBP-SP) “A vida é uma só.…
Lacan, a Escola e o acervo de Nicéas “vivo”
ACERVO VIVO CONVIDA
Fabiola Ramon (Diretora de Biblioteca EBP-SP, 2021-2023)
Um convite foi lançado para alguns colegas que frequentam a Biblioteca da EBP-SP: produzir um texto que traga o testemunho do uso e/ou do encontro com algum livro ou revista do acervo da EBP-SP.
Camila Colás foi a primeira a responder a esse convite. Ela apresenta um percurso que parte da expressão de Lacan, “sujeito de gozo” sobre o sujeito psicótico, encontrada em um texto de Jean-Claude Maleval, termo que a intrigou. Então, na busca por elucidá-lo, encontra uma resposta na revista francesa “Les Cahiers pour l’analyse”, volume 5, um dos títulos raros de nosso acervo, que foi incluído na nossa Biblioteca com a chegada da doação do acervo Carlos Augusto Nicéas.
Podemos acompanhar esse percurso e as precisões sobre o termo no texto que segue. Boa leitura!
Lacan, a Escola e o acervo de Nicéas “vivo”
Camila Colás /Associada ao CLIN-a
Como transmitir para a comunidade analítica sobre a função da biblioteca na formação de um analista e qual é a importância dessa transmissão? Se o acervo da EBP-SP não sai da sede física, ou seja, os livros não são emprestados, como podemos fazer circular o vivo pulsante presente em suas obras e seus títulos?[1] Fabiola Ramon, Diretora de Biblioteca da EBP-SP (2021-2023) nos coloca questões valorosas sobre qual a importância de uma biblioteca e sua relação com a transmissão dentro de uma Escola de Psicanálise. Trarei uma pequena contribuição sobre esses dois pontos: biblioteca e transmissão.
Como cartelizante participava de um cartel[2] sobre psicose e em uma de nossas reuniões ao ler o texto de Jean-Claude Maleval me deparo com a expressão “sujeito de gozo” de Lacan sobre o sujeito psicótico[3]. Uma expressão que me intrigou. Como nunca tinha lido ou escutado falar “sujeito de gozo” sou levada a buscar a referência em Lacan para entender em qual contexto do seu Ensino esta expressão foi falada por ele.
O contexto da expressão “sujeito de gozo”
Consigo localizar a referência bibliográfica e encontro a expressão “sujeito de gozo” no texto “Apresentação das Memórias de um doente dos nervos” publicada em 2003 nos Outros Escritos, versão brasileira, página 221. Este texto foi publicado originalmente em 1966 nos“Cahiers pour l’analyse” quando Lacan fez uma apresentação da primeira tradução para o francês da publicação integral das “Memórias do presidente Schreber”. Nesta apresentação Lacan fala da genialidade de Freud em inserir nas bases da psicanálise o sujeito da psicose a partir do livro de Schreber “o que significa não avaliar o louco em termos de déficit e de dissociação das funções[4]” e mais adiante Lacan traz a diferença do sujeito do gozo e do sujeito que o significante representa para um significante que é sempre outro.
As traduções para outra língua
Apesar de ter encontrado a referência bibliográfica da fala de Lacan, um problema de pontuação foi verificado por mim. Ao ler o texto na edição brasileira a frase é finalizada como uma pergunta e em vez do ponto final (.) tem-se um ponto de interrogação (?) e essa diferença faz com que a frase tenha o sentido alterado e consequentemente o sentido da fala de Lacan sobre a expressão “sujeito de gozo” na psicose. Inicialmente havia encontrado a expressão citada por Jean-Claude Maleval como uma frase afirmativa.
Com o problema de pontuação sou levada a edição francesa dos Outros Escritos[5]. Nesta edição encontro a ausência do ponto de interrogação ao final da frase de modo que fico mais intrigada e me questiono: será que Lacan realmente estava se perguntando sobre o “sujeito de gozo” na psicose ou estava fazendo uma diferença importante em relação ao sujeito de que o significante representa para um significante que é sempre outro e o sujeito de gozo. Dessa forma restava-me ainda a busca pela publicação original do volume 5 dos “Cahiers pour l’analyse” publicado em 1966 pois só assim poderia verificar como a frase foi falada por Lacan e posteriormente publicada nos Outros Escritos.
O acervo de Nicéas “vivo”
Ao buscar no campo digital encontro os índices e os volumes dos “Les Cahiers pour l’analyse”, porém o texto de Lacan era o único não disponível na plataforma. Em uma das atividades de Biblioteca[6] sobre a doação do acervo pessoal de livros do psicanalista Carlos Augusto Nicéas (EBP/AMP) e do trabalho da comissão com os livros lembro que Heloisa Prado da Silva Telles (EBP/AMP) falou de algumas publicações de Lacan e dos cadernos e revistas que Nicéas trazia quando ia à Paris na época em que Lacan era vivo e que agora estavam disponíveis na biblioteca da EBP-SP.
Diante da lembrança da atividade fui a biblioteca física da EBP-SP procurar pela bibliografia. No acervo de Nicéas encontro dois números dos Cahiers pour l’analyse: o volume 3 “Sur l’objet de la psychanalyse” e o volume 5 “Ponctuation de Freud”. No volume 5 encontro a apresentação de Lacan sobre a primeira tradução para o francês por Paul Duquenne do livro do Schreber. O encontro com a revista me causou uma alegria, pois finalmente encontrei a bibliografia original (a frase não era uma pergunta e sim uma afirmação) e consegui entender ainda melhor o contexto e a importância dos Les Cahiers pour l’analyse para Lacan. No seminário 19[7] Lacan fala sobre os Cahiers e a relação com sua voz “devo dizer que eu tinha pouquíssima voz. Mas tenho uma voz da qual nasceram os Cahiers pour l’Analyse, uma literatura muito, muito, muito boa que decididamente lhes recomendo.”.
Seguindo ao lado da perspectiva de Lacan em relação a voz trago um outro efeito após o encontro com o caderno na biblioteca, a escrita do texto “O sujeito da psicose é o sujeito do gozo?[8]”. Um trabalho que tive a oportunidade de transmitir e discutir em uma atividade de Cartel. Para concluir, penso que a biblioteca tem um lugar privilegiado dentro da Escola. O contato físico com os livros permiti a possibilidade do encontro com o Ensino de Lacan, fazendo com que a biblioteca ocupe um lugar de causa de desejo, assim o volume 05 dos Cahiers ressoou em mim como uma presença “viva” tanto do percurso “vivo” do analista Nicéas, como a presença “viva” de Lacan na minha formação como praticante da psicanálise dentro da Escola.