BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
VERDADE, UM LUGAR
Fabiola Ramon
Membro da EBP e da AMP
“Hora da palavra, quando não se diz nada
Fora da palavra, quando mais dentro aflora”.
(A terceira margem do rio – Letra e música: Caetano Veloso/Milton Nascimento)
Cristiane Alberti em recente intervenção intitulada “Liberdade de expressão: a verdade é amável?”[1] traz importantes contribuições para pensarmos o tema das XI Jornadas da Seção São Paulo.
Destacarei um ponto específico de sua explanação: de que Lacan situou a verdade como um lugar. Trata-se de um lugar necessário, assim como também é necessário que este lugar esteja vazio, para que possa produzir saber. Essa é uma condição fundamental para que uma experiência analítica possa se dar.
A psicanálise joga com os efeitos de verdade desse lugar vazio. Tomar a verdade como um lugar é decorrência lógica do dito e do dizer[2] e isso a experiencia analítica nos dá mostras.
No entanto, a própria dimensão do dito e do dizer na contemporaneidade coloca novas problemáticas e desafios para a psicanálise e nos reenvia para a articulação entre verdade, palavra e gozo.
O corpo no comando
Com a queda do Outro e das identificações, o que está no comando na atual civilização é o corpo, como localiza Alberti[3]. Lacan trabalhou essa questão em seu ensino. O que experimentamos na clínica e na civilização hoje são novas formas de laço social pautadas na identidade, efeito desse lugar do corpo e do gozo em tempos de inconsistência do Outro. “O menor traço que se possa ler no corpo, torna-se identidade”[4].
O corpo que está no comando é um corpo separado da palavra, apartado do desejo do Outro, que não inclui a dimensão do inconsciente, corpo reduzido ao silêncio. “Um corpo que fala, um corpo em peças soltas que são escutadas sem mediação da palavra”. Um “corpo silencioso”[5] que prescinde de um circuito que inclui o campo do Outro e a alteridade. É a dimensão do gozo autista, sem mediação, que se apresenta aí.
A autodeterminação é a expressão contemporânea desse corpo sem palavras “sou o que sou, o que quero ser”. O sujeito equivale ao que ele diz, “a margem da interpretação não está assegurada”[6]. Corpo e palavra estão disjuntos.
Em uma análise a dimensão do corpo está na experiência. Mas, trata-se de um corpo não apartado da palavra, um corpo falante com os seus mistérios: “o mistério do corpo falante é outra coisa: o corpo é um enigma para o sujeito mesmo, um lugar de opacidade, de questionamento”[7].
É nesse ponto da dimensão do mistério e do enigma que a palavra pode fazer ressoar, que podemos articular algo da verdade e seu lugar fundamental na experiência.
A palavra e a verdade
A palavra é matéria fundamental da experiência analítica e do discurso analítico. Mas, de qual dimensão da palavra estamos falando em psicanálise? Trata-se de qualquer palavra?
Miller, em O Lugar e o laço (2000-01), localizava um novo estatuto da palavra na civilização “do individualismo crescente”[8], comandada pelo objeto mais-de-gozar. Ele apontava que a “palavra se converteu em fator de bem-estar”[9], e que este aspecto “subtrai a palavra de sua função de verdade”[10], ou seja, ele indicava o esvaziamento da palavra.
Com as mutações no laço social, novos aspectos que indicam o esvaziamento da palavra têm sido objeto de interesse da psicanálise, como por exemplo o fenômeno do cancelamento e seus efeitos para os seres falantes, ou as fake news, com efeitos devastadores no campo político e dos laços sociais.
Como Alberti indica, na atualidade, a palavra se vê atacada, sem lugar, na medida em que da palavra se exclui as entrelinhas, os equívocos e ao que dela se remeteria a um dizer que ex-siste ao dito. Trata-se da palavra sem margem para interpretações, que se pretende ao pé da letra, mas que nega a própria dimensão da letra.
Verdade e experiência analítica
Como indica Alberti, “é importante não perder de vista que a análise é uma experiência de verdade”[11]. A palavra instaura uma relação com a verdade que coloca o sujeito do inconsciente a trabalho. Pela via da transferência, o sujeito fala a um Outro, que por sua vez, coloca em jogo um real para além da relação com a verdade. Para que isso se dê, é preciso passar por um circuito no qual está em jogo consentir em se lançar para além do dito, deixar-se navegar no mar do não sabido, no que escapa e faz equívoco.
Trata-se da palavra que tem relação com a verdade, o que não significa que se trata de uma verdade a ser revelada. O horizonte da verdade remete o falasser para além do dito. Por isso esse lugar é necessariamente vazio.
Trata-se de localizar a verdade como produto lógico do dito e do dizer[12]. Não se trata de algo da ordem do pensamento ou do conhecimento.
A experiencia analítica revela que o sujeito fala mais do que sabe, e que não sabe exatamente o que fala, há um mais além do que diz ao falar e o lugar vazio da verdade faz funcionar esse circuito. Um circuito para além do próprio sujeito: “Eu, a verdade falo”[13], não é o sujeito que fala, mas a verdade como coisa, signo de um dizer.
Na frase de Lacan “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz em o que se ouve”[14] há um ponto importante em relação ao subjuntivo da frase. Ele localiza que o dizer não é da ordem do necessário, não tem relação direta com dito, ou seja, não é uma relação de determinação. Por outro lado, para que o dizer possa se dar é preciso passar pelo dito.
“Para que um dito seja verdadeiro, é preciso ainda que se o diga, que haja dele um dizer”[15]. Isso fala, no sujeito, pelo ato da palavra. Há uma dimensão de responsabilidade sobre o ato da palavra e sobre isso que fala no sujeito.
O dizer, produto lógico do dito, ex-siste ao dito e traz consigo uma relação com o real. O dizer na análise realiza algo do verdadeiro ao tocar o real.
A intepretação encontra seu lugar lógico aí, no ponto mesmo que a verdade só pode ser meio-dita, lida nas entrelinhas.
Palavra sem o dizer
Alberti adverte que quando o corpo está separado da palavra em sua dimensão enigmática, o que se passa é um dito que se reduz ao próprio dito e não remete a um dizer. “Na medida em que o mais além do dito, que remete ao inconsciente, cai, o dito não remete ao dizer, mas se reduz ao dito”[16].
Nessa lógica, segundo Alberti, as normas plurais estão ocupando o lugar da interpretação. Nesse ponto, a questão da verdade se localiza, mas não como um lugar vazio, referência êxtima, exterior ao discurso, mas no próprio dito. A verdade estaria no próprio dito. Decorre-se daí a verdade jurídica, tutelada pelo campo do direito, ou a ideia de “toda a verdade”, que logicamente recai no falso (fake) “efeito do lugar da verdade querer ser toda”[17] e diversas outras problemáticas e sintomas que forcluem a dimensão do inconsciente.
Nesse sentido, cabe aos praticantes da psicanálise fazer existir o discurso analítico, que ao operar, deixa livre o lugar mais além do que se diz, o lugar vazio da verdade, e aposta que algo da dimensão do gozo autista possa ser tocado, mas não sem antes passar pelo dizer.