BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
INTERVENÇÃO SOBRE O VETOR: “A VERDADE COMO ESTRUTURA DE FICÇÃO”[1]
Maria Cecília Galletti Ferretti
AME, Membro da EBP e da AMP
Freud e Lacan, depararam-se, ambos, com a questão da verdade, questão tratada pela filosofia desde os seus primórdios. Marie-Hélène Brousse, abordando o uso que faz Lacan da filosofia e fazendo notar o quanto Lacan refere-se a ela, afirma que ele “utiliza alguns filósofos de uma maneira que lhe é própria. Depois da descontinuidade radical que Freud produziu no discurso por meio de uma definição inédita do psiquismo, ele julga necessário reler certos filósofos à luz da experiência analítica”[2]. Na medida em que a obra destes filósofos “são verdadeiros parceiros na elaboração de seu ensino, o próprio Lacan o diz: a obra deles é como a de Freud, incontornável”[3]. Sim, estamos diante de ensinos incontornáveis e voltamos à questão: Freud e Lacan depararam-se, ambos, com a questão da verdade.
Embora Freud tenha, em “Análise terminável e interminável”, reiterado que o trabalho analítico se baseia no amor à verdade, o próprio fato de haver redigido tal texto, nos mostra sua preocupação com o alcance da psicanálise. É como se ele se perguntasse sobre o porquê de tal amor à verdade não render os frutos que deveria render. Freud sempre se mostrou ciente das limitações da psicanálise e de seu poder terapêutico, assim como sempre se mostrou extremamente preocupado em buscar reformulações e investigações. Neste texto, o peso dado à pulsão de morte presente nos conflitos, faz pensar no que Lacan afirma em seu Seminário 23, O sinthoma. Para Lacan, sobre a distinção entre verdadeiro e real, Freud considera que “o verdadeiro dá prazer, e é isso que o distingue do real. O real não dá, forçosamente, prazer”[4]. Nesta passagem do Seminário 23, continua dizendo (embora afirme distorcer alguma coisa em Freud), que procura ressaltar que o gozo é do real e isto comporta o masoquismo, “o masoquismo é o ápice do gozo dado pelo real”[5].
Quantas voltas deu a questão da verdade em Lacan?
Na clínica, começou por colocá-la como “revelação”, isto é, revelação da verdade, opondo-a às resistências, ao recalque; às inversões dialéticas fez corresponder um alcance da verdade. Depois considerou que a verdade só pode ser meio dita, que há uma impossibilidade de dizê-la toda, optou pela variedade da verdade, e pela verdade mentirosa. Mas, poderíamos considerar que ao trilhar este caminho que considera haver um progresso no caminhar das ideias – à maneira hegeliana – estaríamos alcançando um verdadeiro dito sobre a verdade? Poderíamos desconsiderar, se seguíssemos este argumento sua afirmação em Formulações sobre a causalidade psíquica, dos Escritos, de 1946? Lemos nesta passagem: “Está muito em moda em nossos dias “superar” os filósofos clássicos. Eu poderia igualmente ter partido do admirável diálogo com Parmênides. Pois nem Sócrates, nem Descartes, nem Marx, nem Freud podem ser “superados”, na medida em que conduziram suas investigações com essa paixão de desvelar que tem um objeto: a verdade”[6]. Aqui, a verdade é motor e paixão.
E, especialmente, a verdade como estrutura de ficção?
Quero destacar uma passagem do Seminário 20: Mais, ainda, na qual Lacan se refere à matemática; minha intenção é examinar e levar à discussão de saber em que medida esta referência de Lacan pode ser cotejada à verdade entendida como ficção. Diz Lacan: “o real só se poderia inscrever por um impasse da formalização. Aí é que eu acreditei poder desenhar seu modelo a partir da formalização matemática, no que ela é a elaboração mais avançada que nos tem sido dado produzir da significância. Essa formalização matemática da significância se faz ao contrário do sentido, eu ia quase dizendo a contra-senso”[7].
Muito se poderia dizer sobre a função da matemática nas abordagens lacanianas. Por exemplo, poderíamos enveredar pelo caminho de apontar, como faz Jacques-Alain Miller em “Ler um sintoma” e dizer que em um determinado momento “o sonho de Lacan era colocar a psicanálise no nível das matemáticas”[8], examinando que só aí o real não varia, mas que quando a física a aplica a noção de real se torna escorregadia fazendo com que o que para um é real, para outro não passa de semblante. A matemática é pura escrita, que não se refere a nenhuma realidade ou objeto específico; ao trazer os matemas para a psicanálise, Lacan trouxe para perto dela seu desejo de formalizá-la e transmiti-la elucidando, no entanto, que é preciso explicar os matemas e adentrando as explicações, deparamo-nos com as dificuldades da linguagem. O matema ao transmitir integralmente não funciona sem a linguagem, ele, portanto, claudica.
A matemática é um exemplo de uma ficção no sentido de uma “construção lógica ou artística à qual não há correspondência na realidade”[9], tendo seus axiomas e seu sistema de deduções, o isto não quer dizer nada, se faz ao contrário do sentido. Pergunta Lacan: “a formalização da lógica matemática, tão bem feita para só se basear na escrita, não poderá ela nos servir no processo analítico, no que ali se designa isso que invisivelmente retém os corpos?’’[10]. Vemos, assim, surgir o corpo, o parlêtre tomado no dispositivo analítico que pode revelar em seu sintoma, em seu sofrimento, a verdade como ficção. A verdade côngrua, congruente, não aquela do sistema lógico aristotélico, mas aquela que não pretende ser toda, a do semi-dizer.
Na clínica é fundamental examinar a fecundidade da verdade mesmo que semi-dita ou entendida como ficção. “O objetivo, é que o gozo se confessa, e justamente, porque ele pode ser inconfessável”[11].
Jacques-Alain Miller chama a atenção para a questão de haver, poderíamos assim dizer, três tempos em uma análise, aquela que começa, aquela que continua e aquela que termina. Afirma: “Passa-se evidentemente pelo momento da decifração da verdade do sintoma, mas chega-se aos restos sintomáticos e aí não se diz stop. O analista não diz stop e o analisante não diz stop. A análise, nesse período, é feita da confrontação direta do sujeito com o que Freud chamava de restos sintomáticos e aos quais conferimos um estatuto completamente diferente. Sob o nome de restos sintomáticos, Freud esbarrou no real do sintoma, no que do sintoma é fora de sentido”[12].