BOLETIM ELETRÔNICO DAS XI Jornadas da EBP - Seção São Paulo Local das Jornadas: Meliá…
Verdade, de um lugar (a) Outro
Paula Maia Peixoto Camargo
Psicanalista, Integrante da Comissão de Boletim
É preciso partir de algum lugar, sobretudo quando é a verdade que está em causa nas XI Jornadas da EBP Seção-SP. Ao fazer ressoar o que está em questão no tema Ⱥ Verdade e o Gozo que não mente, deparamo-nos com um problema que se estabelece na condição própria e inerente à verdade: a de que, como diz Lacan, não é possível dizê-la toda. É exatamente nesse ponto que se fundamenta o que se desloca da discussão da verdade na tradição do pensamento filosófico, para o campo da psicanálise. No caso da psicanálise, o deslocamento em forma de torção se dá, fundamentalmente, porque o problema da verdade é indissociável do problema da linguagem. Se Freud inventa a psicanálise, é porque soube dar lugar ao inaudito da modernidade, a saber, o sujeito do inconsciente.
Podemos dizer, com Lacan, que o sujeito do inconsciente é o sujeito moderno por excelência. Afinal, em seu texto A ciência e a verdade, Lacan no diz que a divisão proporcionada pelo método cartesiano da dúvida hiperbólica “é a divisão experimentada do sujeito, como divisão entre o saber e a verdade”[1] e que essa divisão descola, sobretudo, o sujeito e a verdade. Ora, o que está em jogo e o que J. A-Miller[2] em Sobre o transfinito destaca desse texto de Lacan é a relação paradoxal que se estabelece entre Psicanálise e Ciência: unem-se pela relação ao sujeito da ciência, opõem-se dado que a verdade caberia à psicanálise – o que ela faz é “dar lugar a verdade e invocar a verdade”[3]. Podemos dizer que o sujeito velado da ciência – o fracasso lógico da sutura é a condição que resta como velamento – é desvelado por Freud, em uma operação própria ao discurso/práxis da psicanálise.
Nesse ponto, Freud “soube deixar o inconsciente falar”[4]. Fala-se lá onde isso clama obter um saber sobre a verdade do sintoma. Podemos então considerar uma máxima da proposta freudiana e que Lacan retoma, em seu primeiro ensino, na forma de sua prosopopeia: “Eu, a verdade, falo.”[5] Acrescentando-lhe um elemento decisivo, no seminário 16, “o fato de que ela fale, não quer dizer que ela diga a verdade”[6]. O que é dito certamente não se conforma com o que já, desde sempre, se perdeu.
A verdade que fala é o impossível no dizer. Ou, como diz Lacan, “não se fala do indizível”[7], de alguma forma introduzindo que para além de sua metade, acessível ao semi-dizer, não há nada a dizer. Não há nada a dizer mais além de uma elucubração de saber sobre lalíngua e do que se produz de equívocos no plano da linguagem.
Há uma passagem anterior que retomo com intuito de avançar a partir de outro ponto, localizado no texto a Coisa Freudiana: “A verdade revela-se complexa por definição, humilde em seus préstimos e estranha à realidade, insubmissa à escolha do sexo, aparentada com a morte e, pensando bem, basicamente desumana”.[8] J. A-Miller em seu curso A Natureza dos Semblantes comenta as seis qualificações da verdade escritas por Lacan, mas destacarei nesse trabalho apenas duas.
A verdade revela-se complexa por definição e J.A-Miller, “opõe-se claramente a chamá-la de simples e impossibilita qualquer posição de contemplação da verdade”[9]. A complexidade que ela enseja significa “que ela pode incessantemente ser desdobrada e que não se pode adquiri-la por uma comunicação unívoca.”[10]. É importante assinalar que essa comunicação unívoca estabelece uma não-relação com a verdade. Se há uma problemática da comunicação unívoca, esta pode ser interrogada como avesso, sobretudo político[11], do que a verdade figura em psicanálise – pois a verdade em psicanálise coexiste à linguagem.
Há, mais ainda o que complexa abrange: dialética. E, em um salto (livre) – do rigor às referências da dialética da verdade para Lacan em Hegel – é possível atribuir a esse movimento os processos de revelação, de esparsos clarões, variações…. como formulado na parte final do seu ensino. Afinal, a elucubração de saber sobre o modo de gozo, nos processos de análise, configuram-se como uma verdade mentirosa – pois sua estrutura é a de ficção.
A segunda qualificação da verdade que extraio é a de que a verdade está aparentada com a morte. Nesse ponto J.A-Miller refere a relação que esta tem com o quarto capítulo do Avesso da psicanálise em que a verdade é colocada como irmã do gozo. São, segundo J.A-Miller, abordagens a partir da compulsão a repetição que nessa época “se traduz com um significante que é em si mesmo uma força de morte, supõe a mortificação da realidade”[12] Nesse seminário, a verdade é incluída na estrutura e participa, enquanto lugar, das operações entre os elementos que configuram os quatro discursos propostos por Lacan. A perda, o resto que se produz pela incidência do significante, “permite a escritura mesma do objeto a” como mais-de-gozar, “ao parentesco da verdade e do gozo, como resto irredutível a respeito do saber, do significante e de sua articulação”[13].
No momento em que há uma virada no ensino de Lacan, algo do gozo que não mais se articula a cadeia significante passa ao largo “do reinado da castração”[14]. Trata-se do falo impossível de negativizar e que segundo J.A-Miller nos permite interrogar “o problema da relação da verdade e o gozo sob o ângulo do gozo como do impossível de negativação”[15]. E, mais, em relação ao objeto “de jeito nenhum, os objetos a só entram em função relativamente à castração”[16]
Ensejando um fim que não se encera, construo: J.A-Miller nos transmite que “no gozo que não mente há uma interferência da verdade mentirosa”[17] no ponto em que “ali onde não há significante não se pode ter certeza de haver gozo”[18]. Enfim, pergunto: Aos olhos do gozo de impossível negativação, como pensar a interpretação analítica na passagem entre efeitos de verdade para efeitos de gozo no corpo? Uma verdade se revela, um gozo que não se negativa se resolve? O que não se resolve, ressoa… Relançar a questão da verdade, pensando agora na operação da interpretação analítica, a partir do gozo no corpo, permite colocar a verdade, a partir de então, em um Outro lugar.