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#Orientação – De que conexão se trata?
Por Heloisa Prado Rodrigues da Silva Telles
O título das nossas Jornadas exige um trabalho prévio em torno de um significante que orienta a perspectiva por meio da qual se deseja abordar os temas do amor e do sexo – refiro-me ao significante (des)conexão. Introduzido no título para levar a um debate do tema em consonância com a “subjetividade da época”, tal como proposto no argumento das jornadas, este significante porta em si mesmo uma problemática que alude tanto a questões de estrutura, tal como a psicanálise nos ensina, como às transformações que supomos existir nos modos de se estar no mundo e com os outros. Ou seja, nos coloca em uma fronteira onde temos de saber ler alguns fenômenos da época e ao mesmo tempo nos interrogarmos quais as perspectivas da psicanálise frente a eles.
Em outras palavras: o que muda na prática analítica, orientada por um discurso que pode, diferentemente de todos os outros, acolher o sintoma – naquilo que este revela que não há inscrição no real de um saber sobre a sexualidade1 – e admitir o gozo como causa?
Adoto o termo “conexão” aqui com certa liberdade, sem buscar referências nos campos que lhe são próprios, e arrisco a dizer que ele domina os tempos atuais e, justamente por ser abrangente ao extremo e arraigado na cultura, seu significado deixa de ser questionado – permitindo-se, ainda, o neologismo (des)conexão para aludir ao efeito contrário do que a tecnologia ou o discurso corrente pretendiam.
Se estes fenômenos – alinhados pelo empuxo a “estar conectado”- resultam da presença de recursos introduzidos na cultura pela ciência e pela tecnologia, cujo uso supostamente pode operar nos hábitos e modos de vida, temos que a pretendida “conexão” transmutada em “(des)conexão” revela que há um real em jogo, o qual é preciso ler.
De imediato, diria que quando pretendemos abordar fenômenos que tangem os laços sociais, ou o que estamos aqui também livremente chamando de “subjetividade da época”, é a própria psicanálise, enquanto discurso, que temos de saber sustentar.
Desde o lançamento do título das Jornadas, pensei em uma referência, a “teoria do parceiro”2, de Jacques-Alain Miller, da qual destacarei alguns pontos essenciais para seguir a discussão.
O primeiro ponto a extrair desta referência é a contingência decidindo sobre o modo de gozo do sujeito. Cito Miller: “O que a experiência nos ensina em cada caso que se submete à experiência analítica [….] é a função determinante de um encontro, de um aleatório, um certo acaso, um certo “não estava escrito”. E é justamente esta contingência, ao decidir sobre o modo de gozo, “que torna evidente a ausência de um saber no real no que diz respeito ao gozo e à sexualidade”3.
Segundo: “o amor quer dizer que a relação com o Outro não é estabelecida por qualquer instinto. Ela não é direta e sim mediada pelo sintoma”. E Lacan definirá o amor justamente como “o encontro no parceiro, dos sintomas, dos afetos, de tudo o que nele e em cada um marca o rastro de seu exílio da relação sexual”3.
Terceiro: o parceiro fundamental do sujeito jamais é o Outro, nem como pessoa, nem como lugar da verdade. “Ao contrário, o parceiro do sujeito, o que a psicanálise sempre percebeu, é algo dele próprio: sua imagem, seu objeto a, seu mais-de-gozar e fundamentalmente o sintoma”.
A partir destas coordenadas dadas pela “teoria do parceiro”, tal como Miller a formula a partir do ensino de Lacan, podemos interrogar: quando nos propomos debater o amor e o sexo, na atualidade, na perspectiva da “conexão” ou da “desconexão”, quais problemas queremos e podemos formular?
As diretrizes apresentadas por Veridiana Marucio, no argumento das Jornadas, nos auxiliam a traçar alguns caminhos. Destaco: “Em tempos de (des)conexão, o impossível de ser escrito, ou seja, a inexistência da relação sexual, não apenas se mostra mas também se coloca como matéria e objeto de fetiche e de consumo”5. Assim, há uma indicação, neste texto, de que a inexistência da relação sexual mostrar-se-ia de um modo próprio, com determinada especificidade, nos tempos de (des)conexão; e, ainda, que esta mesma inexistência da relação sexual coloca-se como matéria e objeto de fetiche e de consumo.
Dois pontos cruciais que certamente instalam-se no centro do debate, uma vez que não resultam evidentes e merecem de nossa parte um esforço de demonstração. Uma chave de leitura dada por Veridiana é que “todo discurso que se aparenta ao capitalismo deixa de fora, foraclui, isso que chamaremos as coisas do amor, ou seja, a castração”; ou ainda, “o amor e o sexo poderiam ser medidos, mercantilizarem-se, fazerem parte das coisas da vida as quais usamos quando nos convêm”6.
Portanto, como efeito de discurso, amor e sexo assumiriam a face de objeto e teriam seu valor no uso que deles se poderia fazer. Uma perspectiva que, para se sustentar como tal, nos faz pensar estar apoiada no rechaço da dimensão do inconsciente e na possibilidade de que os discursos assemelhados ao capitalismo poderiam determinar o modo como se relacionar com o Outro – ou seja, diferentemente do que propõe o discurso analítico, fora da dimensão da castração.
Assim, cabe-nos perguntar: esta operação torna-se bem-sucedida, pelo que podemos recolher em nossa prática como analistas? Não é justamente o que resta da incidência destes discursos sobre o falasser que escutamos e devemos escutar?
A ideia presente no argumento da jornada, a qual destacamos, permite um desdobramento do problema, isto que agora queremos tocar: se o amor, para a psicanálise, pode ser definido como o encontro de tudo que no parceiro e em cada um marca o traço de seu exílio da relação sexual, e se tomamos isto como um fato de estrutura, de que maneira podemos pensar que isto sofre mudanças em função dos tempos que vivemos?
Serge Cottet escreveu um texto de orientação7 para o Congresso da AMP de 2016, no qual há uma passagem a propósito da pornografia que tem todo valor por esclarecer algo na via que nos interessa. Situa, inicialmente, a referência ao erotismo barroco como a sublimação artística mais oposta à pornografia e nos diz:
Constatamos aí aparentemente uma atividade sexual sem tabu, sem interdição, mas também sem semblante. Uma super abundância de gozo a excluir toda falta (manque); nem véu, nem castração; um falo sempre em atividade. Também nenhuma transgressão, já que não há nem leis nem regras. E, sobretudo, um tabu da fala.
É o cúmulo da antinomia entre o gozo e a fala. Dizer que efetivamente não há relação sexual, é dizer que todo corpo pode substituir outro, sem singularidade própria, sem identidade.
Esse limite que é o espetáculo do gozo pornográfico indica algo do apelo a um gozo separado do inconsciente, e à ficção de um controle do ser [….]. Aqui também se obtém a negação do inconsciente através da qual o falasser «imagina-se o senhor de seu ser, isto é, não ser linguagem » (Ornicar, n°29, Compte-rendu d’enseignement, p. 14).
Esta citação de Jacques Lacan se aplica aqui ao sentido em que o «eu penso», assim como a fala, parecem inúteis e supérfluos para um gozo do corpo suposto bastar a si mesmo. Signo dos tempos, que desconhece a função da perversão, a instrumentalização de um gozo que não é o do perverso, mas o de um Outro suposto.
Alguns elementos discretos, nesta passagem do texto de Serge Cottet, servem como pontos de orientação muito valiosos. O primeiro elemento é o aparentemente, referido à atividade de pornografia como uma atividade sexual, aparentemente, sem tabu, sem interdição, sem semblante. O segundo é o “cúmulo da antinomia entre gozo e fala”, ou seja, como se pretende um gozo destacado da fala ou colocado em contradição com ela. E, finalmente, o terceiro elemento, bastante discreto, está no momento em que é dito: “Esse limite que é o espetáculo do gozo pornográfico, indica algo do apelo a um gozo separado do inconsciente, e à ficção de um controle do ser”.
Destaca-se, a partir destes elementos, que a pornografia – cujo estudo interessa ao nosso tema, uma vez que ela está aí em oferta por meio das conexões eletrônicas – pode nos ensinar que o espetáculo performático – ou seja, no sentido daquilo que se pretende realizar – não se confunde com o real em jogo ou, ainda, não exclui este real.
Quando Cottet diz que indica algo do apelo a um gozo separado do inconsciente, ele nos lembra que gozo e inconsciente são indissociáveis e que a tentativa de uma disjunção não elimina este fato de estrutura. Ou ainda, que é à custa da negação do inconsciente (negação, insisto) que o falasser imagina-se outro, como “senhor do seu ser”, ou seja, não dividido (“ficção de um controle do ser”), se quisermos retomar as referências de Lacan no início de seu ensino.
Estas balizas têm todo alcance para interrogarmos o que se transforma no amor e no sexo em função dos objetos oferecidos pela tecnologia ou a partir dos modos de vida, e como devemos localizar aquilo que se repete por estrutura quando aparentemente as causas parecem ser outras.
Tomando emprestado o significante “conexão” e transladando-o para nosso campo, a psicanálise nos ensina que não podemos nunca nos furtar da conexão fundamental referida à “contingência que decide sobre nosso modo de gozo” e que o parceiro do sujeito sempre está determinado pelo objeto a, pelo mais-de-gozar e pelo sintoma, o que implica inexoravelmente o Outro – a angústia não deixa de demonstrá-lo quando estão em jogo as questões do desejo e do amor.
Cabe-nos, como analistas, a importante tarefa de poder dar lugar ao que insiste do inconsciente, mediante as diferentes formas de seu aparente desaparecimento.